São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Revista 'Clássica' reformula temas e enfoque

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Completa reformulação, editorial e científica, observa-se em "Clássica", periódico da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Este número compreende um "dossiê" dedicado à "Adivinhação no Mundo Antigo", cujos artigos realçam vários prismas, abrindo-se para diferentes culturas, épocas e disciplinas. Encetando a revista, o trabalho de um pesquisador eminente como J. Bottero pode ser tomado como índice de orientações observadas também em outros textos desse número. Ao focalizar os anexos entre práticas divinatórias e pensamento científico, elaborados pelos velhos mesopotâmios, ele insiste no "ofício do historiador", que deve sair de si mesmo e aproximar-se da situação estudada, sem o que "estaremos a julgá-la em relação a nós."
Cumprindo esse preceito, Bottero, em vez de cindir os dois campos –adivinhação e ciência– ou de vê-los como série a passar de um termo a outro, ilumina os laços constitutivos entre ambos, liames estes fundados na concepção material do universo, nos procedimentos lógicos dedutivos e na linguagem de caráter hipotético e causal, próprios à cultura em foco. Estamos longe, nessa conduta prudente, atenta aos processos históricos sem perder de vista suas implicações universais, de outras abordagens bastante difundidas que –a partir de teorias prestigiosas– pretendem resguardar a historicidade e, "ipso facto" a destroem. Nelas, afirma-se o respeito pela diferença e alteridade, mas dissolve-se o "outro" à força de distingui-lo do "nós", erigido como modelo. Nesse rumo, altas civilizações como a grega, são transformadas em "primitivas" ou imperfeitas "pré-essências" (capitalismo, ciência, racionalidade, postos como plenitude).
Nota-se também, ao longo dos artigos, uma outra linha comum: a presença da escrita e sua importância no enriquecimento cultural. Dessa perspectiva, pensamento, ação e linguagem aparecem como constitutivos um do outro, configurando-se esta última como forma da cultura geneticamente entrelaçada a outras, e não como simples instrumento. Trabalhos atuais, como os reunidos por M. Detienne em "Les Savoirs de l'écriture em Grece Ancienne" (Lille, 1988)– vem suplementar a visão que privilegiou a oralidade no mundo grego. Apresentando seu projeto, Detienne acompanha a tese de que "a escrita, enquanto prática social, constitui um modo de pensar, uma atividade cognitiva, que envolve operações intelectuais" atitude esta assumida sem prejuízo "de outras grandes civilizações que se edificaram sem recorrer a técnicas escritas, sem desenvolver tecnologias do intelecto a partir de um sistema de notação escrita do pensamento".
Além do painel sobre adivinhação, a nova revista apresenta um outro conjunto de trabalhos, sobre "Estudos clássicos e modernidade". É esta, uma entrada importante, pois retira aqueles estudos do nicho isolado onde a cultura acadêmica dos últimos anos os relegou, permitindo recuperar sua força ativa e propulsora do saber. Se é certo que não podemos conceber o mundo grego como prolegômeno da racionalidade moderna, também não podemos minimizar sua força decisiva na fundação do saber comtemporâneo, tantas vezes neutralizada pelo encontro do catolicismo conservador, que liga a modernidade diretamente ao medievo, com a "história das mentalidades", que diluiu séculos de reflexão livre e irreverente numa atmosfera "primitiva", "mágico-religiosa". Mas o prestígio dessas correntes não é inabalável. E. Garin nos traçou os rumos através dos quais ocorreu a "recepção" dos gregos no Ocidente moderno, ressaltando sobretudo a presença de Platão no primeiro Renascimento, com a importância em seu legado técnico, visando intervir nas forças da natureza e da política, herança esmaecida pela tradição místico-religiosa do neoplatonismo.
"Clássica" abrange também as notícias obrigatórias em todo periódico científico: os "Instrumentos de pesquisa" que, neste número, descrevem bancos de dados informatizados, com os centros receptores e divulgadores de informação: O "Thesaurus Linguae Latinae", em Munique, o "Thesaurus Linguae Graecae" na Universidade da Califórnia, a "Epigrafia Grega e Latina", organizada em Lausanne, o banco de dados para a arte grega, no Beazley Archive, de Oxford. Finalmente, segue-se a parte bibliográfica, com ensaios e críticas.

A OBRA
Clássica, publicação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Apoio do CNPq. Editora Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, São Paulo, CEP 01212-010, tel. 011 223-6522). 253 págs. CR$ 6.916

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