São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Ensaios de Rosenfeld são reunidos em livro

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

A publicação destes ensaios de Anatol Rosenfeld sobre teatro faz parte do nobre esforço, coordenado por Jacó Guinsburg, de editar em livro a parte inédita da extensa (e esparsa) obra do crítico alemão naturalizado brasileiro. Num momento em que se concede ampla consagração a vultos do teatro como Nelson Rodrigues e o próprio José Celso, é justo recuperar a obra do estudioso que, ao lado de Décio de Almeida Prado, estabeleceu a crítica teatral moderna no Brasil.
Mário de Andrade implantou uma linha de atividade crítica em São Paulo que se tornou sistemática a partir dos anos 30, com o surgimento da USP. Refugiado do nazismo, Rosenfeld veio somar-se a essa corrente, embora nunca tenha pertencido à universidade. Sua atuação se deu basicamente por meio de conferências e artigos para jornal. Mas o esforço de desprovincianizar a compreensão da cultura e da sociedade brasileira, aproximando-a dos parâmetros da crítica européia, associa o trabalho de Rosenfeld ao das primeiras gerações de intelectuais formados pela USP.
"Prismas do Teatro" reúne agora, sob mais uma daquelas capas tediosas da Perspectiva, nove textos de caráter geral e 14 críticas de espetáculos montados entre 1964 e 1973, quando o autor morreu. Alguns erros tipográficos não comprometem a leitura (Arturo Ui, por exemplo, da peça de Brecht, aparece como "Arturo VI" na pág. 187), mas faz falta, em diversos ensaios, a indicação da data, não se sabe se por esquecimento ou por ter sido impossível precisá-la. O tom geral dos artigos é descritivo, didático, e alguns deles –como o que traça um panorama da evolução da mise-en-scène da tragédia grega até a atualidade– são de utilidade informativa. O que não quer dizer que o crítico se exime de opinar.
Sobre o próprio Nelson Rodrigues, por exemplo, seu juízo não era dos mais favoráveis. Rosenfeld não perdoa, no autor de "Vestido de Noiva", a intenção moralizante, o tom de dramalhão e o nível narrativo que ele considera incapaz de superar a comédia de costumes. Do ponto de vista de uma "interpretação mais profunda da realidade social", as primeiras peças de Plínio Marcos, para o crítico, parece que se saem melhor. Não sabemos, no entanto, o que Rosenfeld teria achado das encenações que revelaram um Nelson Rodrigues mitológico, montadas depois do período em que o dramaturgo manteve uma atitude política no mínimo inoportuna.
No conjunto dos textos é possível distinguir, se não duas fases, dois momentos opostos. Num primeiro momento, o autor insiste na autonomia do teatro em face da literatura. Ao contrário do texto literário, no teatro não são "as palavras que fazem as personagens, mas estas que fazem as palavras". Num ambiente cultural ainda sufocado pelo beletrismo acadêmico, é natural que Rosenfeld se empenhasse em ressaltar que o texto é apenas uma das interfaces, nem sempre importante, do fenômeno teatral, cujo âmago é a atuação do ator.
Ainda em 1970 ele retoma o assunto ao polemizar com o romancista e dramaturgo Osman Lins, que num artigo havia pedido aos atores que atuassem sem "nenhuma convicção interpretativa", com a "neutralidade da página". Mas a polêmica é extemporânea, reação provocada pelo excesso de zelo literário do escritor pernambucano. Pois as preocupações de Rosenfeld já se voltavam na direção contrária: defender não só o texto, mas a própria palavra sitiada.
É que em meados dos anos 60 se instalou a tendência teatral que Rosenfeld identificava com a "crise do diálogo". Tributária das idéias formuladas por Artaud nos anos 20 e 30, essa tendência se disseminou rapidamente, com fúria internacional, e de certo modo prevalece até hoje. O diálogo se desarticula e se fragmenta; a própria ênfase é deslocada para a expressão corporal, para a música e para imagens de efeito agressivo ou desconcertante. As linhas entre palco e platéia se dissolvem. Como no teatro primitivo, os atores às vezes se tornam sacerdotes que passam a exigir, de espectadores estupefatos e a seguir bocejantes ou simplesmente ausentes, não só que assistam ao espetáculo, mas que participem de uma experiência mística.
É quase incrível que na época da diversidade cultural e da liberdade criativa, uma teoria que surgiu há 60 anos continue a ser apresentada como iconoclasta e seu cânone formal obedecido com a mesma reverência que cercava as teses de Boileau no século 17, religiosamente acatadas pelo teatro da época. Irritado com o Living Theatre, então em visita ao Brasil, Rosenfeld escreve: "Como se neste mundo, tumultuado e devastado por ambições e paixões, por impulsos desenfreados e pela vontade de poder irracional, jamais pudesse haver racionalidade em demasia, lucidez demais!"
Nessa busca de um equilíbrio dinâmico entre pulsão e reflexão se refletem os ecos do velho humanismo europeu, hoje gravemente ameaçado outra vez, do qual Anatol Rosenfeld foi um dos expoentes entre nós. Que sua obra seja cada vez mais lida, pelos que ainda lêem, como uma lembrança de que o magma dos impulsos dionisíacos, sem a ajuda de Apolo –o deus da luz, das formas e da razão– é uma força cega incapaz de significar.

A OBRA
Prismas do Teatro. Textos sobre dramaturgia. Entre estes, artigo sobre Osman Lins, estudo sobre o Living Theatre, sobre teatro moderno e sobre tragédia. CR$ 8.870

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