São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Mundo vê a África do Sul sob os mitos do apartheid

JOHN CARLIN
DO "THE INDEPENDENT", EM JOHANNESBURGO

Os zulus e os africâners exigem sua autodeterminação, a violência política grassa nos subúrbios negros, jovens negros estão fora de controle e a África do Sul se prepara para uma guerra civil étnica.
Esta é a percepção muito difundida que se tem do país, retratada por setores poderosos da mídia mundial e que se fundamenta num conjunto de mitos propagados pelo velho sistema do apartheid.
Faça a África do Sul soar como a Bósnia, acrescente um toque do Bronx e o consumidor de notícias pode acreditar que ele está entendendo o que acontece por lá. Mas nada poderia estar mais distante da verdade.
Vamos dissecar o primeiro parágrafo, mito por mito.
Os zulus
O maior grupo tribal sul-africano não é um monolito político. O Partido da Liberdade Inkatha, do chefe Mangosuthu Buthelezi, comanda a fidelidade de alguns zulus, mas não de todos.
Uma eleição após outra demonstra que a maioria dos zulus vai votar no Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, nas eleições de abril. Assim, quando Buthelezi lança um apelo comovente em nome da nação zulu, ele está apenas recorrendo a um velho truque de malandro e buscando refúgio no patriotismo.
A verdade é que a maioria zulu não deseja a autodeterminação e preferiria ser governada desde Pretória por Mandela, que não é zulu, do que pelo chefe Buthelezi, que é zulu, desde sua capital tribal em Ulundi. E é essa a principal razão pela qual os zulus continuam a se matar uns aos outros na Província de Natal, na maior onda de violência política vista na África do Sul desde meados dos anos 80.
Os africâners
Os mais de 50 agrupamentos de direita que afirmam falar em nome dos africâners (brancos de origem huguenote holandesa ou francesa que falam africâner em casa) se reuniram, em maio passado, na coalizão Afrikaner Volksfront (Frente Popular Africâner).
O líder é o general Constand Viljoen, ex-chefe da Força de Defesa Sul-africana. Ele diz que os africâners querem um Volkstaat (espécie de "bantustão branco") e que estão dispostos a ir à guerra para isso. O que ele não diz é que nem todos os africâners apóiam seu chamado à autodeterminação.
São as eleições que mostram que a maioria dos africâners –pessoas cujo maior desejo é levar uma vida tranquila– apostam não no general Viljoen, mas em De Klerk. Eles demoraram, mas acabaram chegando à visão que há muito tempo fundamenta a filosofia do CNA: a África do Sul pertence a todos os que nela vivem e o melhor que poderia acontecer seria as populações negra e branca firmarem um acordo para chegar a uma situação de coexistência pacífica, próspera e estável.
Violência política
Cerca de 80% dos assassinatos políticos ocorridos na África do Sul desde maio do ano passado aconteceram em dois subúrbios negros a sudeste de Johannesburgo, Tokoza e Katlehong. O resto aconteceu na tradicional cabine de comando de Natal. Pelo menos 90% dos subúrbios negros não testemunharam qualquer assassinato político no último ano.
A violência em Tokoza e Katlehong tem sido intensa. Mas Soweto, o maior subúrbio negro sul-africano, tem estado calmo. Há 18 meses, seus 4 milhões de habitantes viviam com medo. Pistoleiros saíam dos albergues de migrantes, controlados pelo Inkatha, e atacavam casas, trens e miniônibus. Depois, os "camaradas" do CNA retaliaram e uma pequena guerra começou.
Mas nada disso aconteceu em Soweto em 1993. Nos subúrbios negros do Estado Livre de Orange, no Transvaal norte, no leste da província do Cabo e outros trechos do território sul-africano, não houve violência. É claro que a criminalidade é outra questão. Mas falar genericamente sobre "os subúrbios negros" como sendo lugares devastados pela violência política é um insulto à imensa maioria dos sul-africanos negros.
Negros incontroláveis
Outro insulto. Ser um jovem negro na África do Sul não é uma condição desejável. Os resultados dos exames nas escolas negras de todo o país no ano passado foram desastrosos e as possibilidades de obtenção de empregos para a minoria que foi bem são remotas. A maioria dos jovens negros depende do apoio financeiro de seus pais ou de sua família mais extensa. Muitos gastam as energias excedentes defendendo a causa do CNA. Um número considerável deles recorre ao crime e, em lugares como Katlehong, jovens armados com o objetivo declarado de defender suas comunidades contra o Inkatha às vezes voltam suas armas uns contra os outros. Mas a grande maioria dos jovens negros sul-africanos passam seu tempo ouvindo música, discutindo futebol e indo atrás do sexo oposto.
Guerra étnica
O fator étnico não dá sinais de que vá se tornar significativo na política sul-africana. Ao contrário do que já aconteceu em muitas partes da África, os sul-africanos (tanto negros quanto brancos) não vão votar pensando em questões raciais ou tribais, entre os dias 26 e 28 de abril próximo. Durante sua campanha, Nelson Mandela vem recebendo reação tão entusiasmada por parte de zulus, sothos e tswanas quanto a que recebe entre seu próprio grupo tribal, os xhosas. A África do Sul negra vai votar avassaladoramente no CNA. Quanto à tribo africâner, seus membros vão lutar entre si, se é que vão lutar, da mesma maneira que fizeram no final da Guerra dos Boêres, quando mais de 5.000 africâners se juntaram ao Exército britânico.
A África do Sul não se enquadra em definições nacionalistas simplistas. Os zulus que apóiam o Inkatha e os africâners que apóiam o Volksfront se juntaram formalmente, desde novembro passado, na"Aliança da Liberdade" (AL), direitistas ultraconservadores temerosos de mudanças políticas. Os dois estão ligados pelo pavor de eleições e da ameaça que a democracia pode representar a seu poder e seus privilégios.
O CNA evoluiu para se tornar hoje, essencialmente, uma organização social-democrata. O Partido Nacional de De Klerk propõe livre mercado, com a consciência de que, sem uma certa medida de intervenção do Estado nos serviços sociais, suas chances de convencer os negros a apoiá-los no futuro serão restritas. O que os dois compartilham é um compromisso com a nova Constituição não-racista. O Inkatha e o Volksfront têm em comum a determinação de derrubar a Constituição e impedir o nascimento da nova África do Sul.
Haverá uma guerra civil? Depende do que se chamar guerra civil. Batalhas campais com tanques, artilharia e aviões, cidades assediadas, exércitos uniformizados: isso não será visto na África do Sul. Mas o terrorismo da AL é provável. Nesse caso, o Exército terá de intervir para manter a paz.
As probabilidades são de que ele conseguiria conter suficientemente a direita negra e branca para que haja condições de realização de eleições livres e justas. Só na hipótese do assassinato de Mandela é que a situação se tornaria imprevisível. Seriam necessárias palavras mais fortes do que "guerra civil étnica" para descrever o horror que se seguiria.

Tradução de Clara Allain

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