São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Folia e cinzas

LYGIA FAGUNDES TELLES

Minha intenção primeira era apontar algumas semelhanças dos Carnavais mais recentes com este de hoje, empenhados todos no sentido de fazer da festa maior um espetáculo concentrado, único. Tão milionário que até está perdendo a graça. Enquanto cresce no luxo, aumenta na vulgaridade que chega a ser agressiva.
O mais fulgurante show da terra dá a impressão de que vendeu a alma ao diabo, comprometido como está com os patrocinadores. Perdeu o bem maior, a liberdade. Até os preços dos ingressos são para os ricos, cotados em dólar, nome do neto de uma velha agregada. Estranhei. Então o moleque vai se chamar Dólar? Ela riu e esclareceu, o genro queria um nome que estivesse na moda...
Rola o Carnaval da periferia, Carnaval dos pobres. Este sim, parece mais espontâneo, divertido, sem o júri julgando como nos circos romanos, o dedo polegar todo-poderoso hesita e vai virando para baixo, condenado?
A solução é ligar a televisão, diante da qual já se abancou o gato Garfield, o mais importante personagem dos quadrinhos. Garfield não fala, mas pensa, e agora mesmo tem os cantos da boca descaídos, num mau humor quase insuportável, as patas-dedos tamborilando impacientes nos braços da poltrona. Aperto o botão seguinte e, em vez das pedrarias e dourados de assustar Tutankamon, aparece a outra face da medalha. Exibe-se com o mesmo despudor dos corpos nus, mas sem a sensualidade. E sem a máscara. O desfile é da miséria, do horror. Acho que não vai pegar mal se eu parar um pouco nessa reportagem, hein? Minha intenção primeira ou segunda é apenas a de aproximar o clichê dos contrastes, mas sem denúncias, chega de denúncias, um cansaço.
O carnaval milionário está competindo com o das enchentes, choveu. As águas de fevereiro vão rolar como na antiga marchinha, os bueiros estão entupidos, as águas procuram os seus caminhos, os mesmos caminhos do homem: águas bravas arrastando na sua fúria tudo o que encontram pela frente. Há cadeiras rodopiando em meio de colchões, panelas e fragmentos do que foi uma cômoda ou armário. A câmera está interessada num cachorro que late como que avisando, Olha, vou saltar! e salta do tampo de uma mesa para a beira do barranco, está salvo, ô! alívio.
Aperto outro botão e entro em cheio na guerra. Já começou outra? Os soldados ensopados de chuva (chove em todo o planeta) avançam na escuridão da noite. Avanço antes a mão de desertora e entro num hospital público. Com os leitos todos ocupados, os doentes se amontoam nos corredores, os mais felizes em padiolas, os outros estendidos no chão puro. Pelo menos aqui não há tiros nem explosões. Está tudo em silêncio, a dor calada.
Uma jovem repórter muito branca e loura, sem suor e sem poeira, vai atrás do médico colhido de surpresa. Quando vê o microfone, sai correndo. Por favor, não. A mocinha insiste, é delicada mas persistente, ousa tocar-lhe o braço. O médico se entrega e encara a câmera com ferocidade, botando fumaça pela boca (acendeu o cigarro), O fato é que o hospital está completamente zerado, a mocinha sabia o que é um hospital zerado? Pois então é isso, o hospital não tem dinheiro nem para comprar algodão! Por acaso ela sabia o que era algodão? Nota zero para esses irresponsáveis, hein, doutor?
Mas não, prometi não falar mais em político, chega! Estas são vagas considerações em torno do Carnaval e outros temas nesta viragem de século em meio a uma voragem intensa demais, com uma alegria que chega a ser flagelante, agressiva. Os corpos na nudez não castigada até que são bonitos, mas os gestos são obscenos, as músicas grosseiras, as letras sem a menor inspiração, eis aí, inspiração, uma palavra que saiu de moda e que devia voltar porque é insubstituível.
Desligo a tela dementada e agora me lembro dos Carnavais antigos, mais alegria espontânea, mais respeito –será que estou virando puritana? Havia uma malícia fina nos famosos préstitos que desfilavam no Brás, eram carros modestíssimos se comparados à fulguração apoteótica das alegrias atuais, mas bem que faziam suas críticas irônicas.
Lembro-me daquele carro, um fundo do mar com uma enorme concha branca que se abria devagar e se fechava. Dentro, uma pálida mulher com vestido de pérolas e turbante branco, as olheiras negras. Com gestos lentos, atirava beijos nas pontas dos dedos quando a concha se abria e ia dizendo, Eu sou a cocaína, eu sou a cocaína... Logo atrás, foliões fantasiados de caveiras atiravam igualmente beijos. Gritavam e a gente gritava, podia ser triste mas não tinha a menor tristeza. Era apenas excitante, engraçado. Por onde andam as misteriosas fantasias de dominó de cetim preto ou roxo, o capuz com arminho branco escondendo a cabeça, luvas, a máscara escondendo a cara, só a voz aparecia também velada pela renda espessa, Você me conhece?
Nesses feriados, estou contente. Vou escrever, o ofício da minha paixão. Às vezes, posso ligar a televisão para ver o movimento mas sem nenhuma crítica. Ora, eles também estão felizes dançando assim pelados, vocação é vocação. Antes de dormir, uma reza pedindo a Deus que guarde os nossos passos. Depois, um copo de vinho tinto, a melhor coisa de mundo para alegrar o coração.

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