São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994
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Western de Altman propõe novo naturalismo

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Na fase mais criativa (1970-1976) de sua carreira e em plena voga dos westerns revisionistas com que Hollywood compensou o seu cauteloso silêncio em torno da guerra no Vietnã, Robert Altman dirigiu o seu primeiro bangue-bangue, "Jogos & Trapaças - Quando os Homens são Homens" (McCabe and Mrs. Miller). Filmado na região de Vancouver, era mais um "northwestern", coberto de fuligem e neve, que, a meu ver, influenciou "Os Imperdoáveis", de Clint Eastwood. E não apenas no que este possui de nebuloso, chuvoso, desglamourizante e evanescente. Também em Presbyterian Church, a primitiva cidade mineira onde McCabe cruzou seu destino com o de Mrs. Miller, o bordel ocupa o centro da vida comunitária e suas putas são a única fonte de alegria e lealdade num raio de muitos quilômetros.
Já no nome (Igreja Presbiteriana) um excêntrico vilarejo, nele a religião sem dúvida chegou na frente, mas logo atrás não vieram a lei nem a escola, mas a jogatina e a prostituição. A América em estado larvar. Seus parcos habitantes são criaturas pouco menos que selvagens, melancolicamente acostumadas a toda sorte de desconforto físico, que passam a vida tirando lama das botas e jogando pôquer num saloon acanhado e infecto. Um tédio só, regado a uísque vagabundo e conversas fiadas que nenhum sentido parecem ter.
A indiferença comunal é um dos subtemas que ligam "Quando os Homens São Homens" a uma certa tradição do western. A exemplo do xerife de "Matar ou Morrer" (Hig Noon), McCabe (Warren Beatty) também se vê obrigado a enfrentar sozinho uma corriola de forasteiros trombudos e com boa pontaria. McCabe, porém, nada tem de heróico: não é um homem da lei, nem tampouco um Galahad das planícies como Shane e os cavaleiros encarnados por Eastwood, apenas um fanfarrão perito em tavolagem, cujo supremo ato de coragem termina de maneira funesta. Sua amada, Mrs. Miller, não é uma senhorita virginal, com os traços de Grace Kelly, mas uma cafetina perspicaz, com a sofrida máscara de Julie Christie.
Rodado em sequência, com um roteiro diariamente reescrito no "set" por Altman e Beatty, este farnoroeste dark sobre um período tardio da colonização americana (a história se passa na virada do século) propunha um novo tipo de naturalismo cinematográfico, esboçado um ano antes em "Mash", com parênteses que não se fecham, lacunas que não são preenchidas e personagens cuja opacidade não é um sinal de deficiência, mas um atestado de que estamos diante de uma obra de textura complexa, anticonvencional, fora-de-série. Embora Altman tenha admitido que, pela colaboração prestada, Beatty merecia figurar nos créditos como co-autor, não é menor a sua dívida com o diretor de fotografia Vilmos Zsigmond, principal artífice do áspero e ferruginoso lirismo conferido a todas as imagens do filme.

Vídeo: Jogos & Trapaças - Quando os Homens são Homens
Direção: Robert Altman
Elenco: Warren Beatty e Julie Christie
Lançamento: Warner (tel. 011/820-6777)

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