São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 1994 |
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Derek Jarman evita clichês da Aids em "Blue'
BERNARDO CARVALHO
Nada pode ser mais irritante na militância gay que a idéia de que exista uma "sensibilidade homossexual", que os homossexuais sejam mais sensíveis que o resto dos mortais, a idéia de que exista algo muito específico nessa sensibilidade que se estende a todos os gays do planeta e os eleva acima do resto da humanidade, seja como vítimas, seja como heróis. A obra do cineasta inglês Derek Jarman, que morreu na noite de sábado, em Londres, em consequência da Aids, é uma curiosa tentativa de ir ao mesmo tempo contra e a favor dessa empáfia (ou burrice), que funciona tanto como tática de resistência do movimento quanto como desculpa para o acirramento da homofobia. Num artigo publicado pelo "The Independent" no início do ano passado, por ocasião da morte de Rudolf Nureyev, Jarman falava da dificuldade de lidar com a Aids como tema, como tentava evitar o sentimentalismo a que levava boa parte das produções ficcionais sobre a doença. "Eu não sou sentimental a respeito da Aids (...). As pessoas perguntam por que Nureyev não usou o fato de ser soropositivo para fazer algo positivo. Minha resposta é que isso é impossível", dizia o cineasta. "Blue", seu último filme, é o resultado dessa busca: 90 minutos com a câmera parada diante de uma tela azul de Yves Klein enquanto ouvem-se sons de hospital ao fundo, barulhos de aparelhos, diálogos de médicos e enfermeiras, e a voz de sua musa, a esguia Tilda Swinton, que já havia participado de "The Last of England" e "Eduardo 2º", entre outros. O aspecto experimental com a tela azul e o som off é um modo de escapar a esse sentimentalismo tão presente em produções com pretextos "sensibilizatórios" ou "conscientizantes". Jarman teria vomitado diante de algo como "Philadelphia", de Jonathan Demme, com Tom Hanks. "O problema do HIV é que ele pode levar mais tempo que a 2ª Guerra para te emocionar", escreveu o diretor no "The Independent". Ao mesmo tempo em que atacava com um ódio incontido o sistema da complacência melosa e a hipocrisia, da qual a militância também não está isenta, Jarman acreditava numa especificidade homossexual. Graças a essa crença, realizou alguns de seus filmes mais originais mas também alguns dos momentos mais tediosos e fracos de sua obra. Contemporâneo de David Hockney na Slade School, onde estudou pintura de 1963 a 67, Jarman compartilhava com o artista plástico um certo hedonismo que lhes permite buscar a originalidade pela via do prazer e não do estoicismo da arte moderna. "Sebastiane", uma versão gay do martírio de São Sebastião totalmente falada em latim, é resultado dessa louvação dos próprios prazeres, sem escrúpulo algum, o que acaba sendo sinônimo de uma afirmação radical da liberdade. É essa mesma louvação dos próprios prazeres como reação aos preconceitos que esteve na base da criação de uma estética e uma cultura gays, por vezes exaltando o sadomasoquismo, que "Sebastiane" endossa. O problema surge quando, depois da invenção, a repetição parece suficiente, quando a via hedonista do esteta se torna mero esteticismo (viadagem), no momento em que a complacência corporativista (basta ser gay) começa a justificar a obra. O próprio Derek Jarman parece ter se incomodado com esse efeito ao optar por uma tela de Yves Klein, durante 90 minutos, para narrar sua própria agonia. Como se, na abstração, à beira da morte, afirmasse não mais sua pertinência a um grupo, mas uma individualidade irredutível. Texto Anterior: Último livro traz memórias de Jarman Próximo Texto: Sens Unik mostra todo o valor do rap suíço Índice |
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