São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Um pedido ao delegado

MOACYR SCLIAR
"NÓS TEMOS UM PEDIDO A LHE FAZER, SENHOR DELEGADO."

"Não, não é colher-de-chá que a gente quer. Quem está neste negócio de assaltar sabe que corre risco. E o nosso risco é de acabar atrás das grades. Acontece, a gente sabe que acontece. São os ossos do ofício, o que é que se vai fazer?"
"Agora: azar é uma coisa, o que aconteceu com a gente é outra coisa bem diferente. Não foi só azar, foi muito pior. O que aconteceu, senhor delegado, eu não desejo para o meu pior inimigo. Assaltante chamado à polícia –o senhor já viu desmoralização maior? Amanhã esta história está no jornal, todo o mundo rindo da gente. É horrível, senhor delegado. É horrível."
"O pior, senhor delegado, é que nem desculpa a gente tem. Vamos dizer que a gente tivesse assaltado, por engano, uma academia de caratê. Vamos dizer que os caras tivessem dado uma surra na gente, daquelas surras de quebrar ossos –bom, neste caso até se justificaria chamar a polícia, afinal a gente estaria correndo risco de vida."
"Mas não, senhor delegado. Não encontramos nenhum lutador de caratê, o que nós encontramos foi um casal de velhinhos que tremiam como vara verde."
"Só que a gente se apavorou, senhor delegado. E o senhor sabe, quando a gente se apavora, começa a ver coisas, a ouvir coisas. Nós pensávamos que estávamos cercados pelos traficantes. O senhor sabe que esta gente é perigosa, olhe só quantos eles já apagaram lá no morro da Mangueira. E, aí, apavorados, chamamos a polícia. Só que não tinha traficante nenhum. Para os senhores, tudo bem: acho que nunca fizeram uma prisão tão fácil. Ladrão chamando a polícia, nem no Acredite se Quiser. Disso nós não nos queixamos, lamentamos nosso azar, mas reconhecemos que os senhores estão no seu direito.
"Agora, o pedido que nós temos a fazer, senhor delegado, é o seguinte: não conte a ninguém o que aconteceu. Invente uma história, diga que foram os vizinhos que telefonaram, que a gente reagiu, que houve tiro. Diga que nós somos muito perigosos, senhor delegado."
"Caso contrário, é a nossa desmoralização. Ladrão que chama a polícia é o fim. Nós nunca mais vamos conseguir assaltar ninguém, as vítimas vão rir da nossa cara. A gente vai acabar morrendo de fome."
"Invente, senhor delegado, invente. Diga que nós somos perigosos, muito perigosos. E conte com a nossa eterna gratidão."

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