São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Desconstitucionalização (uma opção pela democracia)

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO

A maioria dos juristas e dos parlamentares estima a revisão constitucional, que enfim ganha momento, como o mais importante cometimento político da atual legislatura. Mais que o impeachment presidencial ou a ampla investigação congressual levadas a cabo, ela sobressai como a grande oportunidade de abrir o país para a modernidade e o desenvolvimento.
A revisão da constituição de 1998 é necessária porque os antigos vícios do paternalismo, da burocracia, do centralismo e do xenofobismo não só nela sobreviveram ao período autoritário como ficaram robustecidos, agravados ainda por um corporativismo e fiscalismo jamais experimentados. Tudo nela conspirou para que não se completasse no Brasil o ciclo de liberalizações política, econômica e social abundantemente praticadas em todas as latitudes e reiteradamente demandadas por nossa sociedade.
Uma Constituição não é democrática apenas porque seus autores foram eleitos para essa tarefa, mas também quando as opções por valores, interesses e espirações nela contidas não prejudiquem o livre e permanente exercício da crítica e do direito de escolhas políticas por parte da sociedade, a serem manifestadas pelos seus sucessivos representantes no Legislativo e no Executivo.
Em outros termos: o constitucionalismo surgiu como técnica para disciplinar a atribuição, a distribuição, o exercício, a contenção, o acesso e a manutenção do poder investido no Estado -estabelecer as "regras do jogo", na expressão de Bobbio- e não para que as constituições decidissem sobre tudo, substituindo-se aos legisladores e governantes no poder-dever de tomar decisões diante das constantes flutuações da conjuntura interna e externa.
Mesmo sem que o desejassem, os constituintes de 1988 legaram-nos uma Carta elitista, ao se considerarem suficientemente ungidos e aptos não só para organizarem o Estado como para dirigirem as gerações políticas subsequentes; salvo na única exceção a essa distorcida consciência de missão redentora, contida no apologético proviso revisional do art. 3º das Disposições Transitórias. Daí o dever de aproveitá-lo bem.
Realmente, fora da revisão não há solução satisfatória para abolir o "totalitarismo normativo" a que se referiu Miguel Reale: as alternativas políticas de realizar as mudanças necessárias pelo penoso processo da Emenda, ou de postergar o processo revisional têm o incoveniente de manter o país paralisado, no atraso e na instabilidade.
A oportunidade é esta, para recuperarmos a essência da vida política democrática, que é a permanente opção cidadã. Na verdade, não foi dos legisladores e dos administradores públicos que a Constituição de 1988 surrupiou poderes decisionais: foi da própria sociedade brasileira. Furtou-se-lhe o sagrado direito de decidir sobre seu próprio futuro.
Em última análise, só a desconstitucionalização de grande parte desse texto paquidérmico poderá legitimar democraticamente essa Carta polêmica e recessiva, dando-nos uma Constituição tersa, bem equilibrada, de Primeiro Mundo, com ênfase na organização e nos princípios, deixando amplo espaço para os legisladores, governantes e, em última análise, para o povo, o único soberano possível numa democracia.

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