São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Apertem os cintos, chegamos à fase 2

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de uma semana tormentosa em que o FSE (Fundo Social de Emergência) foi aprovado mas não promulgado, estamos preparando o espírito para finalmente aprender por "cartilha" e, no meu caso, talvez no Senado, segunda-feira, o que é a fase 2 do Plano FHC. Em meio a este mar de siglas, vou tentar explicar aos leitores os novos sobressaltos e angústias que esperam o povo em geral e os economistas em particular, nos próximos dois meses, ou 45 dias, segundo as mais recentes previsões.
Vamos entrar na fase 2 do plano de estabilização nesta segunda-feira, quando será finalmente anunciada a URV. Até esse momento não se sabe sequer qual é a regra de indexação dos salários e as declarações do ministro, quinta-feira passada, não auxiliaram para o entendimento do problema.
Dadas as restrições legais à queda do salário nominal e as múltiplas formas de contratos de trabalho e dias de recebimento de pagamento, não é possível a nenhum economista, jornalista econômico ou especialista trabalhista, prever outra coisa que não seja uma enorme confusão.
Qualquer que seja a medida provisória enviada ao Congresso, dificilmente os parlamentares poderão em consciência, mesmo assessorados por especialistas, opinar sobre ela, em particular se sua vontade for preservar os direitos dos trabalhadores.
Nenhum economista das várias correntes, muito menos os empresários e sindicalistas que foram consultados pela imprensa ao longo da semana que findou, foi capaz de avaliar o salário real das várias categorias ou saber qual será a regra de preços praticáveis em março. Imagine-se como avaliar as tendências destas variáveis até o dia D da reforma monetária, que oxalá venha logo para acabar com a insuportável tensão que se apoderou do país. Vale dizer, é impossível assegurar qualquer "neutralidade distributiva" da suposta política de rendas do plano, porque esta parece não existir, nem como arcabouço lógico, nem como precedente histórico.
O grau de sobrevalorização ou desvalorização cambial resultante da conturbada fase 2 também é imprevisível. A pilotagem da URV, do dólar e o acompanhamento de preços nos próximos dois meses não deveria permitir aceleração ou desaceleração bruscas da inflação em cruzeiros reais, já que o plano objetiva a convergência dos principais preços relativos e, em particular, uma paridade estável em URV de salários e câmbio, de forma a evitar tanto um arrocho salarial como uma sobrevalorização cambial na fase intermédia. Pela teoria subjacente ao plano, a reforma monetária não deveria ocorrer antes disso.
Como a realidade infelizmente não se comporta de acordo com o modelo e os preparatórios do plano foram conturbados, a fase 2 será forçosamente ou muito curta e sem alinhamento dos preços relativos, ou então mais longa e muito tumultuada. Por tudo isso, o grau de sobrevalorização (ou talvez até de desvalorização, dependendo da política cambial adotada) e a paridade da nova moeda real é ainda uma das incógnitas que continuam pesando.
Suponhamos então, para não aumentar a minha angústica e a dos leitores, que a reforma monetária já ocorreu, que o trem não descarrilou na Central do Brasil e chegou depois de muitos trancos a Buenos Aires, vale dizer: câmbio fixo, ou flutuação com banda estreita, sendo a expansão da base monetária limitada pela variação das reservas.
Temos que considerar então o problema da administração monetária desta fase 3. O atual contexto internacional (com excesso de liquidez e baixas de juros lá fora) já permitiu encaminhar para o Brasil uma entrada, desde 1991, de cerca de US$ 35 bilhões de capitais especulativos, atraídos pelo elevado diferencial entre as taxas de juros internas e externas. O problema reside, pois, em que não é possível manter a regra da expansão da base monetária seguindo a variação das reservas.
Se forem mantidas as elevadas taxas de juros internas, as reservas continuarão aumentando rápido demais, o que levaria a um indesejado aumento da liquidez primária da economia. A maneira clássica de evitar o estouro da base monetária é através da colocação de títulos da dívida pública para "esterilizar" o aumento da liquidez. O custo desta política é que o governo ficaria forçado a aumentar o seu endividamento às elevadas taxas de juros internas, enquanto a estabilização completa dos preços não ocorre.
Como, aos níveis atuais, as taxas de juros reais internas são muito mais altas do que a taxa de crescimento possível da economia ou da receita tributária, gera-se rapidamente uma trajetória explosiva para a dívida pública. Os crescentes encargos financeiros voltam a criar um sério problema fiscal, justamente na fase 3, quando o "ajuste fiscal" já devia ter-se completado na fase 1.
O FMI já declarou estar preocupado com o impacto do processo de entrada de capitais no Brasil e propõe que o governo faça um ajuste fiscal ainda maior, de forma a obter, ainda este ano, um superávit operacional suficiente para conter o crescimento da dívida interna.
Por outro lado, o assessor especial da Fazenda, o professor Edmar Bacha, sugere uma drástica redução do diferencial de juros, que segundo ele deveriam ser apenas suficientes para compensar o chamado risco Brasil. Esta medida certamente diminuiria os riscos financeiros destas operações, sobretudo o seu custo para o Tesouro. No entanto, as experiências chilena e mexicana têm mostrado que, dada a atual conjuntura internacional, mesmo um diferencial de juros muito pequeno atrai uma enorme massa de capital especulativo.
Uma outra possível "solução", que certamente atenderia os interesses comerciais americanos, seria a de combinar sobrevalorização cambial e total liberalização comercial. Isto permitiria que os país passasse a obter um elevado déficit comercial que funcionaria como contrapartida do superávit da conta de capitais. Essa foi a "solução" aceita pelo México e pela Argentina.
Logo, na ausência de qualquer regulamentação que discipline fortemente a entrada de capitais especulativos, as alternativas que se colocam são o ajuste fiscal permanente à la FMI, ou a passagem para uma situação de elevados déficits comerciais que atenderia os interesses comerciais americanos, e prejudicaria, via sobrevalorização e estímulo às importações "competitivas", os nossos exportadores. O caso do México é exemplar com seus US$ 35 bilhões de déficit comercial nos últimos doze meses.
Assim, os contendores principais da luta na fase 3 serão o Tesouro e o Banco Central por um lado, o Fundo Monetário Internacional e os banqueiros do outro, e os exportadores no meio.
Antes de chegar lá, porém, ainda teremos de aguentar a luta indiscriminada de todos contra todos na segunda fase. No horizonte dos contendores políticos estará a campanha eleitoral e as eleições de outubro.
Deixo de mencionar a batalha jurídica para não aumentar mais a nossa angústia e a da equipe técnica do plano, à qual, a esta altura, só me resta desejar coragem e boa sorte!

Texto Anterior: Taxa bruta supera renda fixa
Próximo Texto: Vai subir
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.