São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Seis séculos e meio de pré-capitalismo

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As relações entre economistas e políticos nunca foram fáceis. Adam Smith, na "Riqueza das Nações", já descrevia o político profissional como "aquele animal insidioso e traiçoeiro cujas recomendações flutuam ao sabor dos acontecimentos". Raciocínio análogo levou James Buchanan, ganhador do Nobel em 1986, a caracterizar o político moderno como o sujeito que pede dinheiro aos ricos e votos aos pobres, prometendo protegê-los uns dos outros.
Obviamente, a hostilidade e incompreensão são recíprocas. Os colegas de David Ricardo no parlamento britânico, por exemplo, referiam-se a ele como "um ser vindo de outro planeta". O primeiro-ministro inglês Lloyd George –um dos políticos assessorados por Keynes no período entre-guerras– retrata o autor da "Teoria Geral", em suas memórias, como "um economista divertido, cujos escritos vivazes mas superficiais sobre finanças e economia política sempre fornecem, quando não são levados a sério, uma fonte inocente de diversão para os leitores". As ilustrações abundam.
Como explicar o conflito entre economistas e políticos? Infelizmente, as razões por trás de tantas e tão persistentes desavenças não podem ser reduzidas a um pequeno conjunto de causas universais. Valeria a pena, no entanto, destacar alguns pontos tendo em vista os descaminhos da economia brasileira e o quadro atual, marcado pela mixórdia indigesta de um plano de estabilização mal explicado, com eleições e a revisão constitucional em curso.
Um dos fatores que está na raiz dos desencontros entre economistas e políticos é o conflito entre dois tipos marcadamente distintos de racionalidade –a econômica e a política. O que é racional do ponto de vista econômico é com frequência letal na ótica dos beneficiários da ordem política existente. Quando isso ocorre, a busca da estabilidade e da eficiência pelos economistas colide com a busca da legitimação no poder pelos políticos.
Não é exagero dizer que o próprio surgimento da ciência econômica, no século 18, está ligado à identificação deste conflito. Controlar, dirigir e transferir recursos são atividades que fazem todo o sentido político para os que exercem e perseguem o poder. A moderna teoria econômica surgiu precisamente como uma tentativa de restringir essas práticas, mostrando o quanto elas eram nocivas à geração de riqueza.
A crítica ao mercantilismo tinha como foco a rejeição da direção politizada da economia que impedia o livre funcionamento dos mercados, restringia a competição e inibia o crescimento. A proposta era desmontar a pletora de estímulos, favorecimentos, cotas, regulamentos, controles, subsídios e restrições manipuladas pelo governo em estreita associação com grupos privados. A ação disciplinadora e impessoal do mercado deveria prevalecer sobre o uso e abuso da economia em nome de fins ditados pela lógica do poder.
Na prática, as tentativas de proteger a economia dos avanços predatórios da política sempre esbarraram em fortes obstáculos. O próprio Adam Smith, por exemplo, ciente do viés ocupacional dos políticos, da disposição humana de colher o que outros plantaram e dos interesses em jogo, jamais alimentou ilusões a respeito: "Esperar que a liberdade de comércio seja algum dia completamente instaurada na Grã-Bretanha é tão absurdo quanto esperar que uma utopia nela seja implantada".
No Brasil, contudo, a coisa foi bem mais longe. No conflito natural entre os imperativos da economia e as exigências da política, a lógica do poder quase que invariavelmente sobrepujou a lógica da estabilidade e da eficiência. O primado da política sobre os princípios mais elementares e universalmente aceitos da racionalidade econômica tem sido um dos traços mais arraigados e nefastos de nossa história como nação.
A extraordinária longevidade dessa deformação é retratada de forma magnífica por Raimundo Faoro em "Os Donos do Poder": "De D. João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações, aos desafios mais profundos. O capitalismo politicamente orientado –o capitalismo político, ou pré-capitalismo–, centro da aventura, da conquista e da colonização moldou a realidade estatal, sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência, o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo –liberdade de negociar, de contratar, de gerir a propriedade sob a garantia das instituições. A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente".
A paisagem agora é outra, mas a viagem descrita por Faoro prossegue sem interrupções. De Dutra a Itamar, passando é claro pelo nacional-estatismo de Geisel, o populismo de Sarney, a "Constituição Cidadã" e a quadrilha de Collor, os pretextos e ocasiões sempre foram os mais diversos, mas o velho padrão nas relações entre economia e política permaneceu inalterado. O "pré-capitalismo" ainda está conosco.
O último episódio nessa longa viagem é a terrível confusão armada em torno da implementação do Plano FHC. Assuntos que deveriam ficar rigorosamente separados acabaram se embaralhando de forma vergonhosa. O coquetel dessa vez mistura estabilização, ambições eleitorais e revisão constitucional: a aprovação do FSE é trocada por favores e cargos, o sucesso do plano passou a depender do quadro sucessório, a indefinição da URV paralisa os negócios no setor privado e até o acordo sobre a pauta mínima da revisão entrou na dança.
Mais uma vez, em suma, a conquista da estabilidade e as reformas estruturais da economia tornam-se reféns da pequena política e do mais descarado "toma lá, dá cá". O Brasil carece dramaticamente de instituições que mantenham a economia a salvo dos abusos, fraquezas e paixões dos donos do poder.
A confusão entre política e economia é um pesadelo do qual o resto da América Latina está conseguindo acordar. O Brasil espreguiçou um pouco, é verdade, mas continua deitado em berço esplêndido. Um dia a viagem acaba. A única dúvida é saber se despertaremos por vontade própria ou porque a convulsão obrigou.

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