São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma chance para o Planalto virar a mesa

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Faltam somente 24 a 48 horas para o lançamento do Plano FHC de combate à inflação. Um prazo curtíssimo. Mas que ainda pode ser aproveitado pelo presidente da República para uma virada de mesa, cancelando definitivamente esses projetos teóricos e convocando representantes dos empresários, trabalhadores e consumidores para adoção imediata de um caminho alternativo contra a inflação.
A sugestão não é nenhuma sandice. Basta olhar ao redor, ler os jornais, ver a TV, para verificar que o Plano FHC é uma aventura isolada de meia dúzia de cabeças teimosas, incapazes de conseguir o apoio de empresários, trabalhadores ou consumidores. Não porque "falte desprendimento" em todas as camadas da sociedade brasileira, como o ministro FHC (e seus "meninos de recado") gosta de dizer em seus xingamentos quase diários. A razão é simples, aritmeticamente comprovável: o Plano FHC não existe, as medidas são contraditórias, trarão ameaça de quebra para empresas e trabalhadores.
A reação inevitável a essas perspectivas abre caminho para um círculo vicioso bem conhecido pela sociedade, pois é mera repetição de "choques" anteriores: as empresas não podem aceitar a camisa de força dos preços, o governo força um tabelamento ou congelamento (por mais que tenha negado essa intenção), surge o ágio, a inflação explode –e para combatê-la o governo "faz" uma grande recessão, na esperança de que, sem conseguir vender, as empresas reduzam os preços. As vendas caem, o emprego recua, a arrecadação de impostos e da Previdência desaba, o "rombo" ressurge– e o país patina no mesmo caos.
A esta altura, cabe tentar explicar a afirmação de que o Plano FHC é cheio de contradições, e por isso mesmo um "salto no escuro". Para isso, parte-se de exemplo extremamente simples:
Poupança – O governo já disse que ela continuará fora da URV, isto é, seus rendimentos não serão achatados. Ela continuará a pagar a correção calculada de acordo com a "inflação velha", com rendimentos na faixa de 45% a 55% nos últimos meses.
Juros – À primeira vista, o tratamento previsto para a poupança é correto. Mas ele exemplifica as contradições do plano, como qualquer criança pode entender. Ora, se os bancos são obrigados a pagar os 45% a 55% aos "donos" do dinheiro da poupança, eles –obvivamente– terão que cobrar também essa correção inteirinha, não-achatada, dos milhões de compradores da casa própria, financiados dentro do SFH com dinheiro da poupança. Ou os bancos fazem isso, ou têm gigantescos prejuízos e correm o risco de quebra. Não é questão de "ganância". É sobrevivência.
Empréstimos – Ora, se os "juros" da poupança continuam acompanhando a inflação antiga, e não a URV, é também aritmético e óbvio que todos os demais tipos de aplicações no mercado financeiro terão que oferecer rendimentos iguais, não-achatados. Volta-se, aí, ao reino das contradições. Se os bancos pagarão juros altos aos aplicadores, terão que cobrar juros altos, baseados na "inflação velha" ou na expectativa de inflação –ou terão prejuízo, com risco de quebra.
Preços – As empresas, do outro lado do balcão, pagarão juros com base na inflação velha, inteirinha. Aí surge, novamente, a contradição do plano: para grande número de empresas será inviável pagar juros na faixa da inflação e adotar, espontanteamente, reajustes de preços "achatados", baseados na média dos últimos meses. Mais uma vez, não é questão de "ganância". Mas de bom senso, para não operar com prejuízo.
A esta altura, qualquer mortal já entendeu as contradições, o aventureirismo do Plano FHC. Haveria alguma possibilidade de adesão de empresários, trabalhadores, consumidores, se todos recebessem o mesmo tratamento, isto é, se a correção "achatada", pela média, fosse adotada para todo mundo. Aí, ninguém estaria perdendo nem ganhando. Mas o plano, como visto, provoca perdas e prejuízos a alguns –e amplia os lucros e ganhos de outros. Tanto as empresas como os trabalhadores continuarão a pagar juros, empréstimos, impostos, aluguéis –todos corrigidos pela inflação inteira. E vão ter que aceitar preços e salários achatados, corrigidos pela média?
Essa possibilidade de adesão espontânea não existe.
Fica aberto, então, o caminho para o governo impor o controle de preços e de salários. O trabalhador não terá como fugir ao achatamento. Mas as empresas, como ficou claro nos choques anteriores, desafiarão o governo. Aí, já se sabe...
A sociedade não precisa aceitar que o país seja empurrado para esse caminho novamente. O Palácio do Planalto pode ter um gesto de grandeza, sustar o plano e procurar uma grande aliança com empresários e trabalhadores para uma fórmula alternativa de combate à inflação. Sonho? Não. Todos os economistas, até da equipe FHC, são unânimes em apontar que existe hoje uma brutal diferença na situação da economia brasileira, comparada com a época Collor ou Sarney. No presente, uma série de fatores facilitaria a queda da inflação –se fossem corretamente utilizados. O grande pecado da equipe FHC é exatamente esse: ao longo de meses colocou como único objetivo a criação da nova moeda. Desprezou incrivelmente as condições favoráveis, não-existentes no passado, para reduzir as taxas inflacionárias. Pior ainda: tomou decisões erradas, criando mais inflação e desperdícios/sacrifícios inaceitáveis para a sociedade:
Dólares – Em governos anteriores, o Brasil enfrentava a falta de dólares. Frequentemente, era forçado a adotar juros altos para atrair aplicações de investidores estrangeiros –ou para "segurar" a produção industrial e, consequentemente, as importações. Essa elevação de juros provocava inflação. Já há dois anos a situação havia mudado radicalmente. O Brasil passou a receber uma enxurrada de dólares, por uma série de circunstâncias. Poderia ter reduzido os juros –e provocar queda de inflação. Essa crítica tem sido feita há meses por famosos economistas, progressistas (como Maria da Conceição Tavares) ou conservadores (como Delfim Netto). Teimosamente, a autoritária equipe FHC não a ouviu. Criou inflação –e outros problemas tão terríveis quanto.
Dívida interna – desinformado ou mal-intencionado, o ministro FHC tem repetido que os juros são altos porque a dívida interna do Tesouro precisa ser reduzida, e para isso o caminho é o célebre "ajuste fiscal". A verdade: com a equipe FHC, a dívida interna voltou a crescer, ou pior, deu um salto, por causa dos juros altos. Como assim? É uma ciranda arrasadora: os juros altos atraem dólares desnecessários (caminha-se para 40 bilhões de dólares em reservas...). Na etapa seguinte, o Banco Central emite cruzeiros para comprar esses dólares. A seguir, como as teorias dizem que muito dinheiro na economia (liquidez) provoca inflação, o BC vende títulos do Tesouro para tirar os cruzeiros de circulação. Eis aí uma das grandes mentiras da equipe FHC: que a dívida cresce por causa do "rombo". Ela cresce pela torrente de dólares especulativos, mantida pela equipe.
Brincadeira I – A equipe passou meses discutindo cortes no Orçamento e aumento de impostos, e fazendo ataques autoritários ao Congresso, alegando ser preciso reduzir o rombo para reduzir a dívida. Na semana passada havia uma notícia, escondidinha-escondidinha, nos jornais: por causa da farra dos dólares, a dívida interna subiu de US$ 41,5 bilhões para US$ 45,5 bilhões.
Brincadeira II – Outra notícia escondidinha-escondidinha mostrava que os gastos do Tesouro com juros também subiram –exatamente por causa da elevação das taxas adotadas pela equipe FHC, e por causa do crescimento da dívida... No primeiro semestre de 1993, o gasto com juros equivaleu a 1,5% do PIB. No segundo semestre, pulou para 2,5% do PIB. Isto é, o pagamento de juros pulou da faixa dos US$ 6 bilhões para US$ 10 bilhões anuais. Um "rombo" extra de US$ 4 bilhões de dólares anuais. Atenção: neste começo de 94, o rombo está sendo gravemente maior, pois os juros subiram mais ainda –e a dívida continua a crescer.
Em resumo: o plano é um "salto no escuro". A equipe insiste em erros. Mudanças nos juros e na atração de dólares começariam a derrubar a inflação –e abrir caminho para a cooperação de empresários e trabalhadores. Aí sim, tudo negociado. Sem "choques". A chance da virada é agora.

Texto Anterior: O SOBE E DESCE
Próximo Texto: Rendimento fechará em 36,8%
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.