São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Genes antigos buscam afirmação

ROGER LEWIN
DA "NEW SCIENTIST"

Perguntaram a um paleontólogo o que ele achara do filme "Parque dos Dinossauros". "Totalmente irreal!", foi a resposta imediata. Quando pediram que explicasse, ele disse: "Você não percebeu? Ofereceram um drinque a um paleontólogo, no filme, e ele recusou. Isso foi totalmente irreal!"
Os paleontólogos se acostumaram a ser alvos deste tipo de piada desde que a fantasia de Michael Crichton sobre a recriação do mundo dos dinossauros chegou às telas. Esta piada foi contada por Michael Braun, pesquisador do Laboratório de Sistemática Molecular do Smithsonian Institution, perto de Washington. A ocasião era uma encontro internacional de especialistas em DNA antigo, promovido em Washington em novembro passado e que Braun ajudou a organizar. Mas depois das piadas a conferência tratou de um tema sério: decidir até que ponto é realista a idéia de pesquisar DNA antigo.
Três anos atrás, na primeira conferência internacional sobre DNA antigo, parecia haver poucos limites às possibilidades de se obter visões de um mundo antigo, extraindo genes de fósseis. A notícia da recuperação de DNA de folhas fossilizadas de 17 milhões de anos de idade havia acabado de chegar às manchetes. Mas hoje os paleontólogos estão pregando cautela. "Relativamente poucos dos trabalhos 'entusiasmantes' dos quais se falava dois anos atrás chegaram até os periódicos científicos", diz Bryan Sykes, geneticista da Universidade de Oxford. "Descobriu-se que muitos dos resultados não puderam ser repetidos".
E as descobertas publicadas sobre DNA antigo também não são imunes a críticas. A idéia de que o DNA possa sobreviver mais do que alguns milênios, para não dizer vários milhões de anos, sempre foi controvertida. Mas durante os últimos dois anos o ceticismo vem aumentando, na esteira de uma onda de alegações espantosas. Como podem os autores ter certeza de suas descobertas, perguntam os críticos, já que não é nada fácil extrair DNA de organismos mortos há muito tempo e ainda mais difícil ter certeza de que o DNA obtido não é fruto de algum tipo de contaminação?
Fusão a frio
Um dos maiores céticos é Tomas Lindahl, um bioquímico do Fundo Imperial de Pesquisas sobre Câncer, em Londres. Ele compara a recente onda de resultados obtidos de âmbar com a entusiasmo inicial suscitada pela fusão a frio: "Vamos ver como ficam os resultados quando tiverem sido examinados adequadamente e houverem sido feitas tentativas de replicá-los".
É provável que também aumentem as controvérsias sobre o impacto da "caça" a DNAs antigos em coleções de fósseis e peles. As coleções de museus, há muito tempo vistas como um campo pouco glamouroso da biologia, são vistas hoje como recursos genéticos valiosos. Isto eleva seu valor num momento em que muitas coleções estão relegadas ao descaso ou estão sendo divididas para salvar dinheiro ou espaço nos museus. Mas isso pode também levar a conflitos entre os curadores dos museus e os biólogos moleculares.
"Os curadores de museus, conservadores por sua própria natureza, passam anos mantendo suas coleções como investimentos a longo prazo", diz Richard Thomas, geneticista do Museu de História Natural em Londres. E em alguns casos a pesquisa de DNA não pode ser feita sem danificar ou destruir um espécime.
Mas estas preocupações estão sendo ouvidas pelos envolvidos na busca por DNA antigo: as críticas estão suscitando uma mudança nas ambições acadêmicas. Os pesquisadores estão ficando mais interessados em tentar resolver questões reais da biologia evolucionária e da genética de populações do que "num resultado espalhafatoso de 100 milhões de anos atrás". "Tem havido uma obsessão em reconstruir os genomas de dinossauros", diz Robert Wayne, que divide seu tempo entre a Universidade da Califórnia em Los Angeles e o Instituto de Zoologia em Londres. "Mas isto está mudando".
As pesquisas com DNA antigo começaram em 1984, quando Allan Wilson e Russell Higuchi, biológos da Universidade da Califórnia, em Berkeley, extraíram fragmentos de DNA de espécimes, guardados em museus, da quaga, um animal semelhante à zebra que entrou em extinção há mais de um século atrás. O anúncio foi uma grande surpresa porque os biólogos sabiam que, quando um organismo morre, seus tecidos se decompõem em pouco tempo. O DNA se fragmenta muito rapidamente sob o ataque inexorável da hidrólise, da oxidação e da radiação cósmica. Mesmo sob as condições mais favoráveis é provável que só restem pequenos fragmentos.
Um ano mais tarde o biólogo molecular Svante Pããbo, na época da Universidade de Uppsala (Suécia) mas agora da Universidade de Munique (Alemanha), extraiu DNA humano de uma múmia egípcia de quase 2.500 anos de idade. Foi Pããbo mais uma vez que começou a expandir os limites do campo quando, em 1989, ele informou haver extraído DNA de um espécime da extinta preguiça terrestre, com cerca de 13 mil anos de idade. Ele fez o mesmo com um mamute peludo de 40 mil anos, conservado no subsolo siberiano, permanentemente congelado.
Exageros
No início de 1990 surgiu a primeira das alegações realmente extravagantes. O biólogo Edward Golenberg e seus colegas, da Universidade da Califórnia, em Riverside, anunciaram a recuperação de fragmentos de DNA de folhas de magnólia de 17 milhões de anos de um depósito fóssil incomum em Idaho. A isto se seguiram, em 1992 e 1993, relatos realmente inacreditáveis da descoberta de DNA de 25 milhões de anos de idade de abelha e cupim e de DNA de 120 milhões de anos de um caruncho. Os espécimes haviam sido encapsulados em âmbar desde sua morte.
Em todos os estudos de DNA antigo feitos até agora, o material genético recuperado tem sido limitado a fragmentos não mais longos do que cerca de 800 pares de bases –e mais comumente 200. O DNA de tecidos vivos, em comparação, existe como fileiras de dezenas de milhares de pares de bases, como componentes de cromossomas. Apesar disto, mesmo fileiras curtas de DNA podem conter informações genéticas suficientes para identificar a espécie e comparar a sequência de DNA com o de um DNA moderno de espécies ou populações descendentes.
Contaminação
Um fator chave no recente aumento das pesquisas com DNA antigo é a PCR (sigla em inglês para }reação em cadeia por polimerase). Criado em 1985, este método bioquímido permite que se multiplique quantidades minúsculas de DNA, produzindo material suficiente para uma análise. Em princípio, a PCR pode produzir milhões de cópias a partir de uma única molécula de DNA. Mas este poder também é uma maldição, porque a PCR não discrimina entre o DNA do espécime em questão e DNA intruso. Este pode vir de bactérias ou fungos que contaminaram o espécime durante sua vida ou após sua morte ou alguma fonte moderna de contaminação.
Sykes disse aos delegados na conferência de Washington que ele e seus colegas certa vez amplificaram DNA de ossos de mamute, mas descobriram que sua fonte era humana, não do mamute. "Acabamos por identificar o DNA como sendo pertencente a um dos técnicos do laboratório", contou Sykes. "É inimaginável o grau de presença do perigo da contaminação", ele prosseguiu. "Uma gotícula de aerossol (de um espirro ou de um spray de solução experimental) é capaz de contaminar dez mil cópias de uma sequência de DNA".
Histórias deste tipo são exatamente o que os céticos como Lindahl gostam de ouvir. Nos anos 70, Lindahl conduziu uma série de cuidadosas experiências em laboratório com DNA descoberto (isto é, DNA destituído de suas proteínas protetoras) em água, com as quais ele calculou a velocidade em que o DNA se degradaria sob condições normais. Num artigo publicado na revista "Nature" em abril do ano passado, Lindahl disse que "é possível prever que... o DNA inteiramente hidratado se degrade espontaneamente em fragmentos curtos num período de tempo de vários milhares de anos, sob temperaturas moderadas". Nas condições mais favoráveis, ele continuou, "parece viável que sequências úteis de DNA com dezenas de milhares de anos de idade possam ser recuperadas" –mas não o DNA de fósseis mais antigos.

GUERRA DE PALAVRAS
Lindahl reserva suas críticas mais acirradas à descoberta feita nas folhas de magnólia, que em sua opinião "não faz sentido". As folhas de 17 milhões de anos de idade estavam presas num depósito que sabidamente preservava fósseis incomumente bem. Apesar disso, observa Lindahl, o depósito em questão é molhado, e a água é a principal agressora química do vulnerável DNA. "O DNA simplesmente não teria podido sobreviver sob tais condições", ele reafirma.
Os pesquisadores que estão na linha de fogo vêm reagindo defensivamente. Golenberg contesta a pressuposição básica de Lindahl, sobre a rapidez em que o DNA se degrada sob condições naturais. "Lindahl erra em sua técnica científica básica", acusa Golenberg. "O certo é gerar hipóteses e depois testá-las contra as observações empíricas. Em vez disso, ele testa a validade das observações contra as hipóteses". Em outras palavras, Lindahl afirma saber que o DNA não pode sobreviver por mais do que algumas dezenas de milhares de anos –de modo que qualquer alegação de casos de preservação por mais tempo deve estar errada.
Lindahl é criticado também por abordar a questão como químico e não como geneticista molecular. "Ele ignora o fato de que o DNA contém informações que podemos usar para checar nossos resultados", diz Golenberg. Qualquer suposto DNA antigo deve ser semelhante, mas não exatamente igual, a um DNA moderno do mesmo tipo de espécie, indicando desta maneira um elo evolucionário entre o passado e o presente. Se o DNA de cupim extraído por Grimaldi e seus colegas houvesse sido um contaminante moderno, o DNA também seria moderno.

Tradução de Clara Allain

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