São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Uma nova pílula no 'american way of life'

RICHARD GRANT

RICHARD GRANT
DO "INDEPENDENT ON SUNDAY"

Desde sua primeira infância até os 46 anos Emily nunca viveu o sentimento da felicidade. Ela foi uma criança magra e tímida, com pele ruim e má oclusão do maxilar, e a crueldade das outras crianças transformou o tempo passado na escola em tormento. Em casa, ela se arrastou entre os destroços do casamento fracassado de seus pais. Sua mãe a criticava e reprendia constantemente, ao mesmo tempo enchendo sua brilhante irmã mais nova de elogios.
Não houve incidentes de trauma ou abusos na infância de Emily, apenas uma sensação contínua de infelicidade. Ela se casou, teve dois filhos e enquadrou-se numa vida abastada em Nova York. Aos olhos do observador casual, sua vida poderia dar a impressão de ser cômoda e estável, mas para Emily era um sofrimento implacável. Padecia de sentimentos crônicos de melancolia e desespero, acompanhados por falta de energia, síndrome pré-menstrual aguda e acessos de choro incontroláveis. Aos 42, socialmente retraída e obcecada por temores em relação ao futuro, Emily tentou a psicoterapia pela primeira vez.
Ela passou quatro anos infrutíferos conversando com um terapeuta. Finalmente, em fevereiro de 1992, no início de sua menopausa, Emily concordou em experimentar antidepressivos. O terapeuta a encaminhou a um psiquiatra de Manhattan, nascido no Zimbábue, o dr, Jeremy Coplan. Ele diagnosticou a situação de Emily como "distimia", um distúrbio depressivo menor caracterizado por um estado de ânimo constantemente pessimista e sombrio.
O dr. Coplan achou que Emily poderia se beneficiar se tomasse Prozac, um controvertido antidepressivo que tomou os Estados Unidos de assalto nos últimos cinco anos.
Emily convivera com sentimentos de infelicidade por tanto tempo que já os considerava parte integrante de sua personalidade, mas quando começou a tomar Prozac eles desapareceram por completo. A nuvem de desalento que encobria se ergueu e a síndrome pré-menstrual parou. Elanão se sentia drogada ou eufórica, mas motivada, enérgica, capaz de dar conta do que precisava fazer.
Emily desenvolveu atividades recreativas, passando a integrar uma sociedade histórica local e tomando aulas para manejar um barco a vela. Seu casamento experimentou uma melhora radical e ela diz ter vivido a experiência, inteiramente nova, de passar fins-de-semana tranquilos e agradáveiscom seu marido. Ela não sofreu qualquer efeito colateral do medicamento, mas depois de um ano decidiu parar de tomá-lo por algum tempo. Alguns dias depois, já recaíra na melancolia.
Emily recomeçou a tomar Prozac em fevereiro do ano passado. Hoje ela diz que precisa da droga para sentir-se "normal". O dr. Coplan sugere que faça outra parada no futuro, mas ela discorda totalmente.
Aqui em Manhattan não é preciso procurar para encontrar histórias sobre casos de uso de Prozac. Eles ecoam por restaurantes e cafés, bares e coquetéis, nas filas para comprar ingressos para o cinema. O best-seller do dr. Peter Kramer, "Listening to Prozac", publicado no início do ano, está nas vitrines de todas as livrarias. Houve uma charge sobre Prozac na "New Yorker" e uma piada sobre Prozac no último filme de Woody Allen, "Um Misterioso Assassinato em Manhattan".
Papelaria em Greenwich Vilage. Um dos balconistass -um rapaz gay, branco, usando óculos estilo Malcolm X - riscou o "David" que figurava em seu crachá e escreveu "Prozac" por cima. Eu pergunto o motivo, e ele medá um grande sorriso irônico. "Oi, eu sou Prozac. Posso ajudar?" Depois vem uma confissão supreendente: "Posso te contar uma coisa? David era uma pessoa muito infeliz, que não existe mais.Prozac me salvou de ser David, e acredite, querido, prefiro morrer a voltar a ser David".
A empresa farmacêutica Eli Lilly & Company, sediada em Indianapolis, lançou Prozac em dezembro de 1987, nos EUA, e pouco depois no resto do mundo. Dezoito meses passados, as vendas de Prozac já haviam superado as de qualquer outro antidepressivo no mercado. Em 1989 as vendas mundiais de Prozac atingiram a marca de US$ 350 milhões, mais do que havia sido gasto com todos os antidepressivos em 1987.
A droga mereceu depoimentos públicos de celebridades decadentes. O magnata do ramo imobiliário Donald Trump, o ex-candidato presidencial promíscuo Gary Hart e o televangelista vigarista e adúltero Jimmy Bakker, todos declararam estar tomando Prozac. Rm 1990, as vendas de Prozac passaram de US$ 760 milhões.
Prozac -o nome de marca dado pela Lilly à fluoxetina- não é inerentemente mais eficaz no tratamento da depressão do que as drogas que o antecederam. Durante 30 anos receitaram-se tricíclicos ou inibidores da enzima monoamino-oxidase (IMAO) aos pacientes que sofriam de depressão.Ambos os conjuntos de drogas incrementaram a ação dos neurotransmissores serotonina e norepinefrina, substâncias químicass pouco compreendidas que geralmente são caracterizadas como "mensasgeiras" porque transmitem informações pelas sinapses no cérebro. Os IMAOs interferem com as enzimas que decompõem estes neurotransmissores. Os tricíclicos inibem sua reabsorção pelas células nervosas que os liberam. O Prozac funciona com base no mesmo princípio que os tricíclicos, mas inibe exclusivamentea reabsorção da serotonina. Ninguém sabe exatamente como Prozac faz isso, nem porque as pessoas deprimidas reagem tão favoravelmente a um ajuste nos seus níveis de serotonina.
A principal vantagem do Prozac em relação a seus predecessores é que tem menos efeitos colaterais. Os IMAOs podem ser fatais em conjunção com vinho tinto, laticínios, cerveja ou picles. Os tricíclicos podem provocar queda da pressão sanguínea, distúrbios cardíacos, prisão de ventre, ganho de peso e tontura; antes que possam ser receitados são exigidos exames físicos e psicológicos extensos. Os efeitos colaterais mais comuns do Prozac, por seu turno, são brandos; a pessoa pode ficar irriquieta e sentir insônia, dor de cabeça, náusea e secura na boca. Quando se anunciou que Prozac também provocava perda de peso (alegação que foi posteriormente desmentida), as ações da Eli Lilly subiram oito pontos num único dia.
Essa aparente falta de efeitos colaterais perigosos transformou o Prozac numa medicação fácil para os médicos receitarem. Emily, por exemplo, provavelmente não teria sido considerada suficientemente doente para que se arriscasse a usar IMAOs ou tricíclicos.
O Prozac levou a distimia e outros distúrbios menores, que antes passavam sem tratamento, para o campo da psicofarmacologia. Descobriu-se que o Prozac era efetivo no combate a todas as desordens depreaaivas, a síndrome do pânico, a síndrome pré-menstrual, a bulimia, obesidade, dependência, fobia social e distúrbio obsessivo compulsivo (DOC), que afeta quatro milhões de norte-americanos e está associado a situações como obsessão de puxar cabelos e cleptomania.
Estou numa festa barulhenta em Nova York, promovida pelos funcionários de uma revista financeira. "Todas minhas amigas tomaram Prozac por algum tempo", conta Suzanne, uma jornalista de 31 anos. "Algumas delas eram realmente loucas e o Prozac as ajudou a sair dessa. Mas a maioria dela, pelo que pude perceber, estava apenas passando por uma fase difícil. Estavam tristes, simplesmente. Quando elas disseram que Prozac as fazia sentirem-se melhor, fiquei curiosa. Afinal eu também fico deprimida de vez em quando -quem não fica? Então fui auma clínica na rua 14. Disse ao médico que estava deprimida e ele me perguntou que remédio eu queria. O processo todo levou dez minutos. Tomei Prozac por dois meses e não senti diferença alguma. Comecei a ter dores de cabeça e voltei a tomar vinho para curar meu baixo astral".
Olho para uma foto de Rhonda Hala na revista "Newsweek". Ela é uma secretária de Long Island de 41 anos e com expressão atormentada, que mostra seu braço cheio de cicratizes para a câmera. O médico lhe receitou Prozac para aliviar uma depressão posterior a uma cirurgia na coluna. Pouco depois ela começou a sofrer de acatisia aguda, um estado de inquietação nervosa que a levava a automutilar-se, pefurando sua própria carne com qualquer instrumento afiado no qual conseguisse colocar as mãos: parafusos, tesouras, percevejos, lâminas de barbear, canetas.
"Eu tinha que sentir dor" disse Rhonda Hala à "Newsweek", "Eu me sentava a cada nervo no meu corpo precisava se mexer. Eu me sentia como se estivesse prestes a pular para fora de minha própria pele". Quando seu médico a mandou parar de tomar Prozac as mutilações pararam. No dia 17 de julho de 1990 ela abriu um processo contra a Eli Lilly, pedindo US$ 150 milhões.
O outro protagonista da reação contrária ao Prozac foi um advogado nova-iorquino chamado Leonard Finz, que no verão de 1990 conferiu a si mesmo o papel de comandante em chefe da batalha legal contra a Lilly. Ele reuniu 60 clientes, incluindo a viúva do astro pop dos anos 60, Del Shannon, que cometeu suicídio enquanto se tratava com Prozac, e Rhonda Halla. O melhor caso de Finz, pelo menos para fins de publicidade foi o ataque homicida cometido em setembro de 1989 por Joseph Wesbecker, um gráfico de 47 anos de Louisville, Kentucky. Enquanto tomava Prozac, Wesbecker entrou com uma AK-47 numa gráfica da Standard Gravure, atirou em 20 colegas -matando oito deles- e depois voltou o cano da arma contra si próprio, Finz foi em todos os "talk shows" da televisão para dizer que "A Eli Lilly tinha seu dedo no gatilho do rifle de Joe Wesbecker".
Phil Donahue deu como título a seu especial do verão de 1990, sobre Prozac "A medicação que leva você a matar", e inspirou mais uma leva de processos por parte de espectadores que haviam tido más experiências com a droga. Grupo de sobreviventes ao Prozac foram ouvidos em outros programas de entrevistas, e discutiram o medicamento numa linguagem normalmente reservada a pais que cometem abusos sexuais contra seus filhos. A loja de departamentos Macy's recusou um emprego de Papai Noel a um homem porque ele estava se tratando com Prozac.
Nenhum dos processos contra a Eli Lilly foi bem-sucedido, embora vários deles ainda estejam pendentes, incluindo o de Rhonda Halla -58 deles foram arquivados em sua maioria porque comprovou-se que os queixosos já sofriam distúrbios psiquiátricos antes de tomar Prozac. O caso Wesbecker ainda nãofoi julgado. Mass Wesbecker havia sido internado quatro vezes por depressão maníaca, e havia feito 15 tentativas anteriores de suicídio. Meses antes de começar a tomar Prozac ele comprara a AK-47 e dissera a sua ex-esposa que gostaria de ir a fábrica e "atirar num bando de pessoas". Outro problema para Finz é que Wesbecker tinha seis outras drogas presentes em sua corrente sanguínea quando apertou o gatilho.
Apesar da natureza espúria da maioria dos processos, a reação contra o Prozac levou as ações da Eli Lilly a caírem em 20%, ou US$ 5,8 bilhões, entre junho e agosto de 1990. Em maio de 1991 a empresa reagiu, oferecendo aos médicos indenização contra processos se eles continuassem a receitar Prozac e pedindo favores da administração amigável em Washington. O primeiro escritório de lobby da Eli Lilly na capital dos EUA foi aberto por um tio de Dan Quayle em 1959. George Bush trabalhou para a Lilly entre seu cargo na CIA e sua campanha para a indicação republicana em 1980, e recebeu grandes contribuições da empresa na campanha presidencial de 1988.
No comitê assessor da Food and Drug Administration (FDA) criado pela administração Bush-Quayle para estudar o Prozac, cincodos oito membros tinham "sérios conflitos de interesses, incluindo apoio financeiro substancial da Eli Lilly", segundo uma reportagem investigativa publicada em "The Nation".
Em 20 de setembro de 1991 o comitê emitiu um veredito favorável ao Prozac, apesar de muitos psiquiatras estarem convencidos de que a droga, quando prescrita erroneamente, é capaz de provocar obsessões suícidas.
A decisão da FDA e uma capa da revista "Time" criticando a "Igreja da Cientologia" marcaram o início do fim da reação contrária ao Prozac.
Em 1992 as vendas mundiais de Prozac ultrapassaram a marca de US$ 1 bilhão. Outros "inibidores da recaptura" da serotonina, como Zoloft, Paxol e Nuvoz, apareceram no mercado americano, e mais uma vez os Estados Unidos ouviram o chamado em direção a um admirável novo futuro utópico. No momento em que este artigo está sendo escrito, estima-se que dez milhões de pessoas já tenham tomado Prozac.
Os psiquiatras operam através de tentativa e erro, formando seus próprios "bancos" de casos que procuram organizar em padrões. Milhões de pessoass estão tomando uma droga poderosas e alteradora da mente, sobre a qual os "especialistas" não são capazes de responder sequer as perguntas mais básicas.
Você telefona para a Eli Lilly e pergunta: "O que é que exatamente o Prozac faz?" Uma voz responde cautelosamente: "Só sabemos que Prozac atua sobre a serotonina", e não é capaz de dar maiores detalhes. Ninguém sabe que papel a serotonina desempenha na biologia dos estados de ânimo.
Os Estados Unidos nunca deram muita vazão à idéia de que a vida é inerentemente trágica, mas as últimas décadas -e especialmente os últimos dez anos, mais ou menos- viram até mesmo a infelicidade corriqueira da vida ser reclassificada como doença. Desde a década de 50, as companhias farmacêuticass vêm produzindo um novo antidepressivo mais ou menos a cada tr~es anos. A grande maioria deles permanece na obscuridade, mas de vez emquando surge uma nova droga perfeitamente adequada à sua época, que passa a fazer parte da cultura mais ampla. Foi o que aconteceu com Valium nos anos 60, e com o Prozac no final dos anos 80.
Nos EUA, 70% dos usuários de Prozac são mulheres. Várias teorias já foram aventadas para explicar esta estatística. As mulheres tem maior predisposição biológica à depressão do que os homens. As mulheres têm maior tendência a buscar ajuda contra a depressão do que os homens, que se sentem sob uma obrigação maior de "aguentar firme". A depressão é uma reação contra as pressões insanas impostas às mulheres por uma sociedade falocêntrica.
Sejam quais forem as razões, as mulheres sempre foram o esteio da indústria dos antidepressivos nos EUA. Nos anos 60, o Valium lhes era vendido como panacéia para seus males. Quando se percebeu que provocava dependência, a dona-de-casa americana arquetípica já se transformara numa figura de olhos vidrados, que se desincumbia de suas tarefas diárias com a assistência do "pequeno ajudante da mamãe". O Prozac se adequa melhor à auto-imagem da mulher americana moderna, que trabalha fora de casa.
Tomo uma cerveja no Max Fish, um bar da moda no centro de Manhattan, enquanto estudo minhas anotações. Duas garotas de 20 anos se sentam a meu lado, se apresentam como Katie e Karen e me perguntam o que estou escrevendo. Eu digo, e elas respondem em coro: "A gente tomou Prozac hoje!"
Katie cresceu em Manhattan, dividindo seu tempo entre as casas de seus pais divorciados e ricos. Ela tem cabelo curto e oxigenado, calças de veludo preto boca de sino e, aos 20 anos, tem uma visão tremendamente negativa da vida. "Prozac simplesmente deixa a vida menos chata, sabe", diz ela -"aquelas coisas normais da vida que irritam a gente. E é bom para quando você vai a um bar. Fica mais fácil abordar homens".
Ela vê sua presa num canto esperando para jogar um video-game, e se aproxima dela. Eu a sigo, ouvindo. "Oi, estou te atacando. Eu tomei uns Prozac há pouco, por isso você vai ter que me desculpar por ser tão metida".
Tradução Clara Allain

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