São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 1994
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Leia a seguir a íntegra da exposição de motivos da criação da URV (Unidade Real de Valor):

A primeira etapa do Programa de Estabilização Econômica – a do ajuste das contas do Governo – acaba de ser viabilizada pelo Congresso Nacional, com a aprovação da Emenda Constitucional de revisão que cria o Fundo Social de Emergência. Com isso, podemos submeter Vossa Excelência as providências para a implantação da segunda etapa e os primeiros elementos e terceira etapa do Programa. Tais prividências estão explicitadas no anexo projeto de Medida Provisória, que inicia o processo de mudança do Sistema Monetário brasileiro, em direção à construção de uma moeda forte e estável.
2. O processo de estabilização da economia e de manutenção continuada das condições para a plena retomada do crescimento do País, para chegar a bom termo, depende da coerência persistente das ações de sucessivos governos. Não é tarefa que se complete da noite para o dia. A firmeza, a determinação e a coragem política de Vossa Excelência têm concorrido para que não nos afastemos desse caminho necessariamente longo, penoso, mas indispensável à implantação das reformas de que o Brasil necessita com urgência. Reformas fundamentais, não só para atacar com eficácia as causas da inflação crônica que impede o crescimento sustentado, mas principalmente para reverter o quadro de injustiças sociais que repugna a consciência civilizada e por vezes chega a abalar a própria crença na democracia.
3. O Governo de Vossa Excelência começou a preparar esse processo através do Programa de Ação Imediata, de 14 de junho de 1993, que estabeleceu um conjunto de medidas voltadas para a reorganização do setor público e que contribuiu para a redução e maior eficiência de gastos; a recuperação da receita tributária; o equacionamento da inadimplência de Estados e Municípios com a União; o maior controle dos bancos estaduais; o início do saneamento dos bancos federais; e o aperfeiçoamento e ampliação do programa de privatização.
4. Para dar continuidade a tais medidas, Vossa Excelência aprovou o Programa de Estabilização Econômica consignado na Exposicão de Motivos nº 395, de 7 de dezembro de 1993 do Ministro da Fazenda.
5. O Programa de Estabilização foi cocnedido, como é do conhecimento de Vossa Excelência, para ser implementado em três tempos:
i) o estabelecimento em bases permanentes do equilíbrio das contas do governo, eliminando a principal causa da inflacão;
ii) a criação de um padrão estável de valor, que denominamos Unidade Real de Valor (URV); e
iii) a emissão desse padrão de valor como uma nova moeda nacional de poder aquisitivo estával – o REAL.
I. O processo de mudança do regime fiscal
6. A solução duradoura da crise fiscal e o alicerce insubstituível de qualquer política consistente de estabilização e retomada do crescimento da economia brasileira. Com este objetivo, o Governo de Vossa Excelência encaminhou um conjunto de providências de caráter emergencial e permanente: a reelaboração do Orçamento de 1994, com estrito equilíbrio operacional; a criaçao do FSE para 1994 e 1995; as sugestões encaminhadas ao congresso Revisor da Constituição Federal em matéria de federalismo fiscal, realismo orçamentário, reforma tributária, reforma administrativa, modernização da economia e da Previdência: o Programa de Privatização.
7. Acreditamos, Senhor Presidente, que os esforços do Governo de Vossa Excelência têm contribuído paar que se consolide na sociedade brasileira a convicção quanto à necessidade de mudança do regime fiscal. As intensas consultas mantidas entre o Poder Executivo e, o Poder Legislativo em torno das propostas que dizem respeito à primeira etapa do Programa de Estabilização foram uma experiência extremamente frutífera nesse sentido. Com espírito democrático e inteiramente aberto ao diálogo construtivo, o Governo considerou e acatou inúmeras sugestões alternativas apresentadas pelos parlamentares, na medida em que era preservado o objetivo de reduzir o déficit orçamentário a zero. O Congresso compreendeu a dimensão da tarefa, o sentido de corresponsabilidade que demanda sua execução e, em particular, o caráter imperativo – do ponto de vista do combate à inflacão – da meta do equilíbrio fiscal assegurado pelo Fundo Social de Emergência.
8. Promulgada a Emenda que cria o FSE, estará garantido o equilíbrio entre receitas e despesas, nos termos da revisão da proposta orçamentária de 1994 enviada ao Congresso Nacional em dezembro último.
9. Na realidade, após a promulgaçào da Emenda, aquela proposta orçamentária deverá incorporar as modificações introduzidas pelo Congresso nacional às sugestões iniciais do Executivo. Está assegurado, no entanto, que essas modificações preservam o equilíbrio orçamentário embutido na proposta origial, como se explica a seguir.
10. Na proposta inicial do Executivo, o Fundo Social de Emergência seria constituído a partir de três fontes básicas: desvinculação de 15% dos principais impostos e contribuições, criação de uma sobretaxa desvinculada de 5% sobre os principais impostos e contribuições e desvinculação do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras (IPMF).
11. Após amplas negociações, o Congresso Nacional houve por bem aprovar um substitutivo que exime os Fundos de Participação de Estados e Municípios, os Fundos Regionais e o Fundo do IPI - Exportação da desvinculação dos 15% por um acréscimo seletivo e desvinculado de impostos específicos; e compensa a isenção dos Fundos, acima descrita, por um acréscimo de 15 para 20% na desvinculação dos impostos e contribuições.
12. As alterações acordadas na composicão do Fundo Social de Emergência reduziram em alguma medida o potencial de sua contribuição para a eliminação do déficit orçamentário. Por isso, no contexto do parecer da Comissão Especial da Câmara que analisou a proposta do Governo e dos entendimentos posteriores que, junto com os Líderes do Governo no congresso, mantivemos com as lideranças e bancadas partidárias na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, ficou acordado que, em adição à criação do FSE, seriam adotadas as seguintes providências para a obtenção do déficit zero:
i) venda de ações e participações acionárias do Tesouro depositadas no FND, cujo gestor e o BNDES;
ii) reestimativa da arrecadação da Confins, possibilitada pelo acórdão do Supremo Tribunal Federal que reconhece a validade da cobrança do tributo;
iii) esforço adicional de arrecadação, viabilizado pela Lei nº 8.846 e pela Medida Provisória nº 427, ambas de 1994, que tratam respectivamente da obrigatoriedade de emissão de notas fiscais e das sanções ao depositário infiel de impostos, bem como pelas propostas de Emenda Constitucional de Revisão apresentadas pelo Líder ao governo no Senado, para reforço da ação da Secretaria da Receita Federal, e
iv) redução nas dotações orçamentárias para outros custeios e capital dos Poderes Legislativo e Judiciário.
13. Com este conjunto de medidas, garante-se o equilíbrio da proposta orçamentária para 1994, conforme demonstrado nos Quadros 1 e 2 anexos. Nesses quadros, ressaltam-se aquelas parcelas das receitas que constituirão o FSE, bem como o impacto das demais medidas acordadas entre o Executivo e o Legislativo.
É de observar que, pela primeira vez, o resultado do programa de privatização fazem parte integrante e fundamental do equilíbrio de contas do Governo. Prevê-se para 1994 uma aceleração do programa, com ampliação substantiva do universo de empresas cujo controle passará para a inicitiva privada. Um programa de estabilização sustentado não pode prescindir de uma profunda mudança no escopo de atividade do setor público, afastando-se daquelas que se sobrepõem às atividades típicas do setor privado e concentrando-se naquelas precípuas à função de governo.
II. O processo de mudança do regime monetário.
15. Bem sabe Vossa Excelência, no entanto, que todo esse esforço do Governo para a implantação do ajuste fiscal, apesar de indispensável, não é suficiente para fazer a inflação baixar em um horizonte de tempo relativamente curto. No contexto brasileiro de indexação generalizada que reproduz hoje a inflação de ontem, mesmo a combinação de um rigoroso ajuste fiscal e de uma política de forte austeridade monetária, não é suficiente para reduzir a inflação de forma rápida e sustentada com a preservação do emprego e do nível de atividade econômica.
16. A inflação tem sido o sintoma mais grave de uma crise profunda do modelo de desenvolvimento brasileiro, crise esta que a administração de Vossa Excelência tem procurado atacar de frente.
17. A permanente inflação alta deteriora a moeda como um dos símbolos mais importantes da soberania e da identidade nacional. São sobejamente conhecidos os efeitos deletérios da atmosfera inflacionária sobre os padrões éticos da nação. Por isso mesmo, a reconstrução da estabilidade econômica, bem como a implantaçào de novos padrões de austeridade e probidade na gestão da coisa pública, passa necessariamente pela reabilitação da moeda nacional.
18. A contínua e sistemática destruição da moeda nacional operou-se de forma que as funções por ela normalmente desempenhada fossem sendo progressivamente perdidas. Sabidamente a moeda nacional perdeu a capacidade de preservar pode de compra. Esta função passou a ser desempenhada por uma pletora de instrumentos financeiros de alta liquidez, a chamada moeda remunerada. Cumpre notar que, atualmente, os agregados Monetários mais restritos (Base Monetária e M1) atingiram valores de 3,7 e 6,2 bilhões de dólares, respectivamente 0,7 e 1,1 por cento do PIB, valorse insignificantes quando comparados ao conjunto dos ativos financeiros – que inclui também instrumentos como FAFs. CDBS. Cadernetas de Poupança. Títulos Públicos e Títulos Privados – que hoje se elva a 126 bilhões de dólares ou 23 por cento do PIB.
19. Essas cifras retratam, portanto, de forma dramática a insignificância a que foi reduzido o uso do cruzeiro real em nossa economia.
20. Mais ainda. Sequer como unidade de conta funciona o nosso combalido cruzeiro real, tal a proliferação – facilmente atestada nas páginas econômicas de qualquer jornal de grnde circulação – de índices de preço e unidades de conta públicas e privadas usadas para os mais diversos fins. Na prática, não temos mais uma moeda conta, mas várias, o que certamente configura uma substituição por índices privados de uma função pública. Ademais, é fácil ver que os preços em cruzeiros pouco informam sobre valorse reais, haja vista a dificuldade do cidadão comum em identificar o real valor das mercadorias quando observa seus preços em cruzeiros reais.
21. O processo de reestruturação na moead nacional a que esta MP procura dar início, mediante a criação da URV e sua posterior transformação no REAL, consistirá em assegurar à moeda nacional a capacidade de:
i) servir como moeda de conta confiável para a denominação de contratos e obrigações, bem como para referenciar preços e salários;
(ii) servir como meio de pagamento e substituir, como reserva de valor, as variadas formas de moeda remunerada hoje existentes.
22. Essas duas metades do processo de reforma monetária serão levadas adiante de forma sequencial. A primeira, com a introdução da URV, e a segunda por sua redenominação como REAL.
23. O tratamento sequencial e, portanto, gradual da reforma monetária é uma inovação face a experiência passada, cuja razão de ser reside em peculiaridades históricas e institucionais do momento econômico brasileiro. Ressalte-se, nessa linha, não só a rejeição da sociedade a medidas de choque, como o extraordinário avanço da indexação que, embora típico de conjunturas de alta inflação, alcanpou tal magnitude no Brasil que não encontra paralelo no mundo.
24. A presença da indexação em cada esfera da vida econômica é exatamente o que cria esta falsa sensação de normalidade diante de uma inflação da ordem de 40 por cento mensais. Com efeito, tem sido repetido pormuitos analistas que a indexação funciona como um anestésico para as dores da inflação. Mas imperfeito e injusto porque não é uniforme, já que o acesso à indexação, principalmente a financeira, é desigual porque, ao realimentar a própria inflação, recria a doença que procura anestesiar, em crescente e perverso círculo vicioso.
25. O sequenciamento proposto para a reforma monetária usa a própria lógica que presidiu à progressiva deterioração do cruzeiro real. Procuraremos em primeiro lugar, através da URv, restituir à moeda nacional a função de unidade de conta, assim ordenando e homogeneizando a prática da correção monetária na economia brasileira. Em seguida, dotar a URv até então apenas uma moeda de conta do atributo de "reserva de valor", mediante sua emissão e transformação no REAL, uma moeda forte e confiável.
III. Construção e uso da Unidade Real de Valor
26. A URv é uma unidade estável de valor, que passa a integrar o Sistema Monetário nacional. Sua cotação em cruzeiros reais será corrigida diariamente, acompanhando a perda de poder aquisitivo do cruzeiro real, conforme estimada por um conjunto de três índices de preços - IPCA-E do IBGE, o IGP-M da FGV e o IPC (terceira quadrissemana) da FIPE. A utilização de dois índices de preços calculados por instituições privadas de pesquisa amplia a confiabilidade da URV. A presença do IPCA-E prevê uma ligação direta da URV com a Ufir e portanto com as receitas fiscais do governo. Além disso, a ação diária do Banco Central no mercado de câmbio estará balizada para garantir que o valor do dólar seguirá a evolução da URV.
27. Este conjunto de providências -índices privados, elo com as receitas fiscais e compromisso de venda de moeda estrangeira- dá, sem sombras de dúvidas, demonstração cabal da seriedade do Governo em garantir que a variação da URV refletirá com precisão a perda do poder de compra do cruzeiro real, até sua substituição pelo real.
28. A URV não é, assim, mais um indexador entre os muitos de que já dispomos, pois desde o primeiro momento fará parte integral do Sistema Monetário do país - inicialmente com curso legal apenas para efeito de medida de valores monetários.
29. A decisão de dar à URV esta característica monetária tem diversas justificativas. A primeira delas é caracterizar, desde o início, que o País está entrando num processo de mudança de regime monetário - afastando-se progressivamente da moeda remunerada e caminhando a passos seguros na direção da moeda estável. Deste modo, a população brasileira poderá desde logo fazer suas contas em URV, acostumando-se com o fato de agora ter uma moeda nacional estável, imune à inflação que corrói o cruzeiro real.
30. A segunda justificativa é ligada a primeira, pois consagra o cálculo, pelos institutos de pesquisas, de índices de preços em URV. Serão estes cálculos que identificarão o fato de em URV a inflação estar próxima de zero, podendo até mesmo ser negativa. Em terceiro lugar, a mudança de padrão monetário permite que se possa fazer a conversão das relações contratuais, sem resíduos inflacionários que, por definição, não existem na novamoeda.
31. A introdução da URV no universo das relações econômicas do País obedecerá a uma lógica sequencial específica. Em primeiro lugar, serão imediatamente convertidos em URV os salários e benefícios previdenciários. Em seguida, os contratos não financeiros. Posteriormente, os contratos financeiros. E, finalmente, a redefinição dos preços, já na nova moeda, o real.
32. A conversão dos salários será imediata, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, por uma razão jurídica. Como a URV será legalmente uma moeda, uma vez introduzida ela imediatamente criará direitos, em particular, o da irredutibilidade dos salários prevista na Constituição. Como sabemos, na lei salarial atual, os salários reais têm picos (no início do quadrimestre de referência) e vales (no final desse quadrimestre). E somente entre o segundo e o terceiro meses do quadrimestre que os salários reais aproximam-se de seu valor médio real. É este o valor que efetivamente pode ser pago, nas condições atuais da produtividade do trabalho e do nível de atividade na economia. Os vales são muito baixos e os picos muito altos. A conversão dos salários pelo vale provoca perda do poder de compra e prejudica os assalariados. A conversão pelo pico provoca uma forte aceleração da inflação. Somente a conversão pela média é consistente, ao mesmo tempo, com o ataque à inflação e a manutenção do emprego e do poder real de compra. Combinando este requisito de equilíbrio econômico com o imperativo jurídico da irredutibilidade, segue-se que a conversão dos salários precisa ser feita logo na introdução da URV e pela média dos quatro meses imediatamente anteriores.
33. Mas a conversão imediata dos salários tem outra justificativa. Trata-se de garantir um piso para as negociações salariais posteriores, que se mantêm livres, e de acordo com a legislação existente. Deste modo, a conversão proposta garante a média como mínimo, de forma inversa a planos passados que, ao congelar os salários, transformaram a média no novo pico. Remete-se, assim, à barganha salarial ajustes adicionais que se possam fazer, em função dos avanços de produtividade obtidos nos diversos setores da economia.
34. Ressalte-se que ao determinar a conversão dos salários em URV, inverte-se a lógica da corrida dos salários para alcançar os preços. Com o novo sistema, os salários passam a refletir a inflação corrente, e, portanto, deixam de correr atrás dos preços, pois passam a acompanhá-los passo a passo.
35. Os demais contratos na economia não têm essa característica de irredutibilidade e portanto podem ser convertidos, posteriormente, por livre acordo entre as partes. Esta é a principal razão da introdução da URV como estágio intermediário para a construção de uma moeda estável. Trata-se de permitir que as relações contratuais na economia tenham tempo de redefinir-se nessa nova unidade de conta, evitando a necessidade de "tablitas" ou outros esquemas de ruptura de contratos que caracterizam os planos anteriores de forma monetária.
36. Os contratos não financeiros poderão, portanto, desde o primeiro momento ser livremente convertidos em URV.
37. Já com relação aos contratos financeiros, decidiu-se seguir um caminho com maior regulação, principalmente por duas razões. Em primeiro lugar, tendo em vista a agilidade com que se podem redefinir relações financeiras, não há prejuízo em postergar sua conversão na nova moeda. Uma vez permitida, essa conversão poderá ser feita de forma muito rápida. Em segundo lugar, a imediata conversão de alguns contratos financeiros específicos pode afetar o equilíbrio contábil de agentes financeiros tanto no setor privado quanto no público. Por esses motivos, a conversão em URV dos contratos financeiros será regulada por decisões a serem tomadas pelos respectivos Conselhos normatizadores.

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