São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 1994
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O julgamento da história

LUÍS NASSIF

Pela emoção, pelo didatismo, pelo chamamento aos valores mais sagrados da cidadania, o discurso do ministro Fernando Henrique Cardoso, no anúncio da URV, tinha tudo para ser histórico... se estivesse a serviço de uma grande causa. Não estava. Limitava-se a anunciar um mero ensaio de mudança de padrão monetário.
O mesmo ocorreu em batalhas anteriores. Mobilizações fantásticas, notável trabalho de proselitismo, negociações exaustivas com partidos políticos... para aprovar a criação do IPMF e do Fundo Social de Emergência.
Está na hora de o ministro colocar seu inegável talento político a serviço das grandes causas. Caso contrário, corre o risco de passar para a história como traidor da cidadania.
Em dezembro do ano passado, o país estava na iminência de romper o círculo vicioso da politização do Estado. Tinha-se um modelo político apodrecido na berlinda, uma clara consciência sobre o tema, iniciativas nesse sentido brotando do Executivo e uma revisão constitucional pela frente.
Decidiu-se pela URV, porque a equipe econômica não conseguiu produzir a tempo diagnósticos abrangentes sobre a crise e porque o ministro fugiu como o diabo da cruz de empunhar a bandeira da ruptura modernizante.
Mais do que tudo: porque havia um vácuo institucional pela frente capaz, não de ameaçar as instituições, mas de romper com cem anos de exploração espúria do estado pela classe política.
Os responsáveis
O plano foi estimulado por lideranças como Ciro Gomes, Tasso Jereissati e Mário Covas. Foi elaborado por intelectuais como Edmar Bacha, Gustavo Franco e Pérsio Arida. Agora todos eles são responsáveis, perante a história, pelo relançamento das reformas modernizantes.
É tradição da história brasileira intelectuais se prestando ao trabalho de prestidigitadores, para contornar pressões irresistíveis contra o sistema político em vigor. Esse papel foi dissecado de maneira definitiva por Manoel Bomfim no começo do século.
"Nas horas de dificuldades econômicas, quando estas atingem o Estado, os estadistas financeiros cuidam em atender apenas a este ou aquele sintoma –a depreciação da moeda, a baixa do câmbio etc., que interessam especialmente ao Estado e tratam de salvar-lhe os interesses, mesmo contra as sociedades em geral", dizia ele.
Repete-se essa lógica. A URV deflagrou uma discussão estéril, que se constitui em ameaça direta à revisão, mesmo seu sucesso dependendo fundamentalmente das reformas modernizantes.
No momento em que uma URV passou a valer um dólar, a âncora cambial já está lançada. As reformas são fundamentais para compensarem, via aumento de produtividade, o encarecimento de custos na economia pela valorização do dólar. Se isso não ocorrer, no mais tardar no primeiro semestre do próximo ano, terá que ser efetuado um ajuste cambial que explodirá o plano e obrigará o próximo presidente a começar o ajuste do zero novamente.
Responsabilidade histórica
Até agora o ministro limitou-se a repassar para terceiros a responsabilidade pelas reformas. Ora é da revisão, ora do Planejamento, ora da Saúde, ora da Administração. Ora bolas! Posto que as reformas se constituem em condição "sine qua non" para o sucesso do plano, a responsabilidade é do ministro.
Agora, fica o país nessa discussão boboca infindável sobre perdas salariais (que não existem), enquanto a revisão emperra e, em nenhum momento, se cuida de estabelecer claramente, para a opinião pública, a relação de causa e efeito entre as reformas e o sucesso do plano.
Se o plano fracassar por falta de reformas, a responsabilidade será individualizada, de todas as pessoas que aceitaram em participar desse jogo. A começar do ministro e dos líderes tucanos.
Por isso, seria ótimo para o país, e para sua imagem pública, que os caciques e intelectuais tucanos trocassem a toga pelo macacão e começassem rapidamente a empunhar a bandeira das reformas.
O eleitor pode ser iludido por alguns meses. Mas a história será implacável.

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