São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 1994
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Biografias devolvem narrativas simples

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Biografias estão na moda. Leio a de Vinicius de Moraes, por José Castello (Companhia das Letras) e a de Carlos Drummond, por José Maria Cançado (Scritta). São interessantes e bem-feitas.
Mais do que isso, têm o que se poderia chamar de uma certa beleza de atitudes uma objetividade compreensiva, uma amizade à distância, um respeito verdadeiro pela figura do biografado.
Acontece uma coisa engraçada com biografias em geral. De um lado, são leituras dispensáveis. Melhor ler os poemas de Vinícius do que saber, por exemplo, a respeito de seus nove casamentos. De outro lado, você começa o livro e não pára mais.
Existe, é claro, o interesse pela fofoca, pelo anedótico, pelo quem era amigo de quem, o carrossel de nomes famosos, os lances surpreendentes.
A moda das biografias tem, entretanto, outras explicações. Saber como foi a vida de alguém que de fato existiu dá ao leitor uma espécie de conforto estético. Nascimento, infância, amores, obras, doenças e morte: impossível escapar a esse esquema narrativo quando se faz uma biografia.
E, nesse esquema narrativo, nessa sequência de fatos, encontramos algo que faz falta na literatura e nos romances atuais: linearidade, inteligibilidade, sentido.
Cada vida tem começo, meio e fim. Ao leitor só cabe acompanhar o que acontece.
Mas a essa sensação de ordem, de destino, de "realidade" (pois afinal tudo o que é contado pelo biógrafo aconteceu de fato), soma-se outra coisa, que contrasta poeticamente com a nitidez dos fatos relatados.
Trata-se do enigma, da incompreensibilidade básica daquela pessoa de quem se narra a vida. Você lê o livro, diverte-se com anedotas, segue o rumo biológico dos fatos –e continua insatisfeito. O biógrafo pesquisou intensamente, sabe tudo a respeito da personagem que escolheu, mas uma opacidade persiste; nada, afinal, se explica.
Por que Vinicius de Moraes bebia tanto? Por que Drummond era tão seco? Explicações científicas, psicológicas, históricas, sociais, poderiam ser tentadas. Jean-Paul Sartre, uma das inteligências mais demoníacas e imperturbáveis de todos os tempos, dedicou-se a "explicar" Flaubert, num livro gigantesco e incompleto. Tinha aplicado o método a Baudelaire e a si mesmo (em "As Palavras"), com uma crueldade científica. Charles Mauron impôs à obra de Mallarmé o aparato minucioso da "psicocrítica" freudiana.
Mas as biografias atualmente em voga não querem "explicar" muita coisa. Querem "contar" simplesmente. E, quanto mais detalhadas e cheias de fatos, menos esclarecedoras são. Preservam, sob o acúmulo de notícias, o misterioso, o íntegro e o próprio de cada pessoa.
Opaco em suas atitudes, irracional, apaixonado, esquivo, é o corpo de alguém que surge em cada biografia. Corpo não dissecado, a deslocar-se no mundo como um fantasma, um morto-vivo, sob o impulso escuro, surdo, da própria carne, da organização noturna e única de suas células, de suas experiências pessoais, de sua memória.
O fascínio pelo gênero biográfico talvez esteja nisso. Todas as anedotas e amores de Drummond ou de Vinicius se mostram, nesses livros, ao mesmo tempo claros e misteriosos. Daí que você não pára de ler –só pára quando a morte força o livro ao ponto final.
José Castello escreveu uma bonita biografia de Vinícius de Moraes. Luta o quanto pode contra o mito do "poetinha", a figura desfrutável e decadente que está associada ao poeta. Mito "adocicado, mas sinistro", diz José Castello. Mas o biógrafo sabe, também, que Vinicius "nunca demonstrou qualquer desejo de escapar" desse destino.
O que se mostra, nas 400 e tantas páginas do livro, é um Vinicius de Moraes tão depressivo quanto debochado, para quem a bebida parecia servir ao mesmo tempo de estimulante e de veneno. José Castello narra experiências místicas do poeta –premonições, fantasmas que ele viu– ao lado de malandragens e seduções. O fundo católico está sempre presente em suas paixões sensuais. Os últimos anos de Vinicius, assim, talvez representem um entregar-se à vida, aos prazeres, aos sambinhas, mas como se cada prazer estivesse cobrando o preço de ser também pecado.
A sequência de mulheres que passaram pela vida Vinicius tende a ser um pouco tediosa. Mas o livro vem com fotografias de todas elas, e vendo o olhar moreno, sofisticado, oblíquo de Lucinha Proença, por exemplo (pág. 202), entende-se como o donjuanismo do poeta pôde traduzir-se em versos de beleza incomparável.
"O Poeta da Paixão", diz o título da biografia. Difícil saber o que é paixão, o que é amor, o que é simples desejo. Difícil, aliás, entender qualquer coisa a respeito de Vinicius. Viramos as páginas e pronto.
A tarefa de José Maria Cançado, tratando de Drummond, foi difícil. A vida deste poeta foi menos interessante e sua personalidade bem mais arredia.
O livro de José Maria Cançado recebeu algumas críticas desfavoráveis. Mas se esta biografia de Drummond tem a tendência de, por vezes, fugir ao simples relato empírico para entrar em digressões e comentários, é por que, creio eu, estamos diante não de um simples biógrafo, mas de um escritor.
O problema, a meu ver, é que a sensibilidade de escritor de José Maria Cançado parece estar ainda em estado de exercício e, por isso, intervém algo abruptamente na narrativa, sem se liberar por conta própria. Mas quando ele fala das crônicas de Drummond (prejudicadas "pela deformação profissional própria da crônica, isto é, um certo rebaixamento do mundo e do ser"), ou se refere à visita que o poeta faz à filha, doente de câncer (Drummond tentou dizer uma piada, "com a falta de graça típica das coisas ditas nos quartos dos enfermos"), sentimos que José Maria Cançado tem uma capacidade de observação que vai além daquela exigida por um mero compilador de fatos e autor de biografias. Seu livro sobre Drummond faz esperar livros ainda melhores.
José Castello, tratando de Vinicius, também atinge um nível literário muito bom. Fala da morte do poeta. Telefonam para um hospital. "A ambulância chega, com seu barulho inútil... a medicina faz seu teatro." Mas Vinicius já estava morto. Nem sempre se mantém este apuro verbal, essa agudeza de sensibilidade nos livros de Castello e de Cançado. Mas é bom, de vez em quando, ver algo bem feito neste país.

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