São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 1994
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Distorções sócio-ambientais da USP

JOSÉ ELI DA VEIGA

Com o início do ano letivo, grande número de mauricinhos e patricinhas irá se deslocar diariamente dos mais nobres bairros da cidade para a Cidade Universitária, em possantes automóveis de luxo, muitas vezes importados. Para assistirem às aulas não pagarão sequer pelo estacionamento de seus bólidos em bolsões especialmente organizados para protegê-los. Depois, poderão relaxar no centro esportivo, o conhecido "cepê", onde se cobra tão somente uma irrisória taxa pelo exame médico de quem pretenda frequentar as piscinas.
Um pouco mais tarde, muitos de seus colegas sairão de escritórios, bancos, consultórios, redações, ou lojas, onde trabalham boa parte do dia, para chegar à Cidade Universitária usando algum dos periclitantes transportes coletivos disponíveis em São Paulo. Estes heróis, que conseguiram entrar na USP apesar de serem pobres, talvez nem cheguem ao final de semana com ânimo suficiente para voltar ao campus, praticar algum esporte, e azarar nos barzinhos das redondezas.
Entre esses extremos, existem, é claro, inúmeras situações intermediárias. A maioria dos estudantes da USP certamente pertence a famílias de classe média, sendo bem provável que boa parte trabalhe por opção; isto é, para não depender tanto da família, poder viajar, ou logo comprar um carrinho.
Todavia, tanto para a visão iluminista da universidade (cf. Rouanet, Sérgio Paulo –1993– "Micromégas nos Jardins de Academos", in: "Mal-Estar na Modernidade", São Paulo: Companhia das Letras, pp: 200-213), quanto para nosso futuro desenvolvimento social, o que mais interessa é que nossos heróis, os alunos mais pobres, possam largar seus empregos e se dedicar exclusivamente aos estudos. O que seria possível se lhes fosse concedido um auxílio financeiro pelos menos equivalente aos baixos salários que conseguem nessa idade, antes de obter um diploma.
Os recursos poderiam ser obtidos junto aos alunos do primeiro grupo, os mais ricos. Bastaria que contribuíssem com quantias semelhantes às que pagaram para cursar um colegial razoável: no mínimo US$ 2.000 por ano. Assim, cada trinca de alunos de alta renda garantiria uma excelente bolsa a um aluno de baixa renda: US$ 500 mensais.
Se tal proposta fosse aceita, o ensino seria pago para os ricos, continuaria gratuito para as camadas médias, e se tornaria mais do que gratuito para os muito pobres: estes receberiam para estudar. Infelizmente, esta idéia nem será posta em discussão, pois grande parte da comunidade universitária é prisioneira do tabu do ensino gratuito universal.
Já que somos vítimas dessa irracionalidade pseudo-socializante, por que não fazer pelo menos uma distinção entre ensino e outros serviços oferecidos pela universidade? Que tal se os usuários de automóveis começassem a pagar pelo estacionamento, o preço que pagam em parkings do centro da cidade ou dos Jardins?
A arrecadação poderia ir para um fundo destinado à recuperação ambiental da Cidade Universitária, que começaria pela reconversão de seu sistema viário de modo a reduzir o tráfego, que já chega a níveis alarmantes. Os engarrafamentos são comuns, os atropelamentos frequentes, os níveis de poluição sonora e atmosférica absolutamente incompatíveis com um local vocacionado ao estudo.
O ideal seria que os bolsões de estacionamento fossem localizados nas entradas da Cidade Universitária e que os deslocamentos internos fossem realizados por outros meios. Qualquer campus planejado com alguma preocupação ambiental não só desestimula o uso de automóveis em seu interior, como pune com pesadas multas quem transgride as rígidas leis internas de trânsito. Por algum motivo misterioso nunca se aplica multa no interior da Cidade Universitária. Tudo foi pensado para favorecer o automobilista, enquanto pedestres e ciclistas são tratados com um monumental desprezo.
Um bom exemplo é o que acontece com os funcionários que ganham pouco. Muitos chegam ao campus saltando do trem junto à marginal Pinheiros. Cruzam o rio por uma ponte abarrotada de caminhões cuja calçada já foi reduzida a alguns hesitantes centímetros. São obrigados a atravessar duas alças da marginal, contrariando as mais elementares regras de segurança. Quando chegam à Cidade Universitária, enfrentam um péssimo ônibus circular que, nesse horário, passa literalmente abarrotado. Ao final da tarde, a epopéia se repete. É urgente a construção de uma passarela que ligue diretamente a estação ferroviária ao portão da USP.
Outro exemplo é a completa falta de segurança nos locais onde as bicicletas costumam ser estacionadas, como as entradas dos restaurantes, do centro esportivo, ou do bosque. Contrariamente ao que acontece com os bolsões de estacionamento para automóveis, nesses locais inexiste qualquer tipo de prevenção contra furtos.
É espantoso que a melhor universidade do país feche os olhos para tantas distorções. Muitos de seus professores e pesquisadores vivem pregando a melhor distribuição de renda e a preservação ambiental em seriíssimas publicações científicas e grandiosos congressos internacionais. Mas parecem não enxergar o seu próprio quintal. Se o fizessem, veriam que, sob o prisma sócio-ambiental, a situação da Cidade Universitária é simplesmente vergonhosa.

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