São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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Ex-radical ataca 'jurássicos' do partido

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

Para a esquerda ortodoxa que controla hoje a direção nacional do PT, o economista e sociólogo Francisco de Oliveira, 58, joga na ponta direita do partido –aquela que vive namorando e não raro se confunde com o PSDB. Nada de errado com isso, responde o atual presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). OK, mas algo mudou. Há poucos anos, Chico –como é chamado pelos colegas– ainda era visto como o mais "gauche" dos membros do Cebrap, uma imagem que foi sendo construída desde os anos mais sombrios do regime militar.
No decorrer desta semana, Chico de Oliveira assumiu posição de destaque no movimento de intelectuais e sindicalistas ligados ao PT que se rebelaram contra a cúpula do partido. Acusou o vice-presidente nacional do PT, deputado estadual Rui Falcão (SP) de fazer "manobras stalinistas" e disse que ninguém quer participar de um "partido jurássico".
Nos anos 70, as coisas eram diferentes. Falcão e Chico trabalhavam juntos no jornal alternativo"Movimento". O primeiro chegou a editar uma coletânea de ensaios do segundo num livro intitulado "O Banquete e o Sonho", da Brasiliense.
Desde 1989 sem a barba que o tornava muito parecido com Karl Marx, Chico diz que o autor de "O Capital" continua sendo seu "herói teórico". "É bom dizer isso antes que algum cretino venha me chamar de liberal", justifica.
Na entrevista que se segue, são inúmeros os exemplos da distância que o separa da cúpula petista. O mais significativo deles talvez seja o respeito e a admiração pelo intelectual e político Fernando Henrique Cardoso, que em 1969, muito antes de ser ministro da Fazenda e sonhar com a cadeira ocupada por Itamar Franco, foi fundador e guru do centro que hoje Chico dirige.
Folha - O PT se define como partido socialista. Um eventual governo de Lula deve preparar o terreno para o socialismo?
Francisco de Oliveira - Como diz meu amigo Francisco Weffort, acho que incumbe ao governo de Lula democratizar o capitalismo. Ao fazer isso, você aponta inevitavelmente para o socialismo. Isso não significa que se deva ter um programa finalista. O PT tem que meter na cabeça que a tarefa de transformação da sociedade não é exclusiva de nenhum partido. Se não perceber isso, corre o risco de virar totalitário.
Folha - A direção do PT é formada hoje majoritariamente pela esquerda mais ortodoxa. Que reflexos isso pode ter sobre o programa de governo de Lula?
Oliveira - Eu acho que isso pode prejudicar o programa de Lula em dois sentidos, ambos ruins. Primeiro, pode transformar o programa em mera retórica, algo que vai servir para ornar as prateleiras dos ministérios. Em segundo lugar, um programa na linha do que membros da direção vem defendendo pode ser ruim se for de fato implementado. Ao tentar se efetivar, vai se chocar com uma realidade avessa, que não o sustenta. O resultado disso é um desastre.
Folha - Você poderia dar um exemplo?
Oliveira - As câmaras setoriais, com as quais o sindicalismo representado pelo Vicentinho está visceralmente interessado. Em larga medida elas são abominadas pelo que aparece nos programas de governo do PT. Se o programa for na contramão dessas formas de atuar que o operariado logrou através das câmaras setoriais, é evidente que haverá um choque entre o sindicalismo e o governo. Democratizar o capitalismo não significa tomar as fábricas dos capitalistas e sim que os trabalhadores devem ser uma força ativa na estratégia de desenvolvimento do país.
Folha - Qual deve ser o limite das alianças para o PT?
Oliveira - O PSDB é um aliado persistentemente perseguido pelos militantes do PT como eu. Quem quiser dizer que estou fazendo o jogo do PSDB que diga. Não preciso dar satisfações a pessoas com visão estreita. O PSDB representa uma parcela moderna e progressista do Brasil. O PSDB tem uma composição política difícil, mas sua base social é, como venho dizendo, republicana ao estilo dos partidos republicanos da Europa: laica, se guia pela opinião pública, tem um certo conceito de ética na política e socialmente, apesar de diversificada, se concentra na classe média urbana. Considero essa base social importante e acho que o PT deveria fazer alianças estratégicas com ela, sem descaracterizar nem um partido nem outro. Além do PSDB, há setores do PMDB, encarnado sobretudo por Pedro Simon, que eu gostaria de ter numa aliança. Acho possível compor com o PMDB republicano, não quercista e não populista.
Folha - Como você está vendo o plano de estabilização do ministro Fernando Henrique?
Oliveira - Discordo do plano em sua estratégia geral de ancorar a moeda nacional ao dólar. Isso não tem volta, como no caso do plano Argentino, onde não há moeda, mas uma moeda especular. No entanto, o plano tem uma qualidade que não pode ser desprezada. Não é um plano-surpresa, um plano-pacote, um plano-milagreiro. Isso é um ganho extraordinário e está em sintonia com dois elementos novos da política brasileira, que são de extração weberiana (de Max Weber): a ética e a racionalidade. Isso deve ser louvado e deve-se muito à personalidade de Fernando Henrique. Antes que algum energúmeno venha dizer que sou um liberal, quero dizer que meu herói teórico não é Weber. Continua sendo Karl Marx, mas só um cretino não reconheceria a enorme contribuição de Weber para as ciências sociais e o pensamento democrático.
Folha - Qual sua opinião sobre o político Fernando Henrique?
Oliveira - É muito clara. Todos nós, no Cebrap, temos uma enorme dívida intelectual e política com Fernando Henrique Cardoso. É um homem público notável, apostou na democracia, trabalhou por ela e o fato de hoje estar à frente do ministério da Fazenda do governo Itamar não desmerece em nada essa carreira. Apesar das divergências que possamos ter, você não me verá nunca dizer que o Fernando Henrique é um inimigo, um oportunista e um político comum. Ele é uma das maiores personalidades públicas do país.
Folha - A reação da direção do PT ao manifesto que identifica o isolamento da cúpula petista e os riscos que isso pode acarretar para o candidato Lula foi pesada. Disseram que o movimento é formado por pessoas que fazem luta política sem princípios e acusaram os seus líderes de manipular alguns signatários. Como ficamos?
Oliveira - O Rui Falcão, ao declarar isso tudo que você colocou, subestima a capacidade política de gente como Francisco Weffort, Paul Singer e Vicente Paulo da Silva. Se fosse ele, eu me retrataria em público. Ele deveria fazer penitência. Não tenho nada pessoal contra Rui Falcão, até trabalhamos juntos no extinto jornal "Movimento". Mas se as posições do Falcão forem essas, lastimo muito.
Folha - Os seus críticos dizem, em tom anedótico, que você cortou a sua barba histórica no momento em que abandonou algumas posições teóricas e políticas mais identificadas com o marxismo. Qual é, afinal, a importância dessa barba hoje aposentada?
Oliveira - Eu aderi à "barbudagem" nos anos 60, na época da contracultura, e acabei gostando daquilo. Todo mundo tem um pouco de narcisismo e eu não sou diferente. Cortei a barba em 1989, um pouco antes da eleição do Collor. Lembro que aqui no Cebrap as pessoas brincaram muito dizendo que aquilo foi uma atitude estratégica para evitar o execesso de barbudos no governo do Lula, que acabou perdendo. Mas na verdade cortei a barba porque minha mulher Rebeca, com quem vivo desde 1984, disse que gostaria muito de ver minha cara original. Tomei coragem e mostrei minha cara a ela.
Folha - Então não era uma barba marxista (risos)?
Oliveira - Nada a ver com Marx. Mas talvez eu tenha sido uma espécie de Zelig sem ter percebido.

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