São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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URV chega tão paradoxalmente que pode até dar certo

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A URV (Unidade Real de Valor) vem tão carregada de paradoxos jurídicos, que até pode dar certo e diminuir a espiral inflacionária. Reconheço que essa afirmação também contém um paradoxo, mas o que, no Brasil de hoje, não é paradoxal?
O primeiro descompasso lógico está em que a medida provisória 434, que criou a URV e o Programa de Estabilização Econômica, como o próprio nome indica, é provisória. Logo, contradiz a definitividade inerente à estabilização.
O governo promete reeditar a medida provisória tantas vezes quantas seja necessário, mas é blefe. Nenhum plano estabilizador sobrevive na incerteza de prorrogações mensais. O artigo 62 da Constituição diz que em casos de relevância e urgência (note bem: só e só em casos de relevância e urgência) o presidente da República poderá editar medidas provisórias com força de lei, as quais perderão eficácia -isto é, não produzirão efeitos jurídicos- se não forem convertidas em lei em trinta dias. Logo, são transitórias.
Há, portanto, quatro hipóteses básicas: o Congresso aprovar a medida provisória, como está; aprová-la com mudanças; não aprovar; e, quarta e última, nem sequer apreciar. Só na primeira hipótese teria sentido falar em estabilidade. Nas demais a instabilidade é ameaçadora. Depende de entendimentos com deputados e senadores. Envolve argumentos e troca de favores.
O segundo descompasso está no nome do real, moeda a ser implantada em até um ano. O plural do nome oferece uma curiosidade. Mais de um real serão réis (porque a palavra se vincula a rei, soberano) e não reais, como seria gramaticalmente lógico. O Aurélio ensina que real é "pertencente ou relativo a rei ou à realeza, ou próprio dele ou dela". No Brasil republicano só o deputado Cunha Bueno (presidente da Frente Monárquica) deve dar apoio integral à escolha.
O real conviverá com sua prima-irmã URV, que, por seu lado, se norteará pelo dólar norte-americano. Evitará a dolarização direta, dando uma área de manobra para o governo. Assim é porque a URV, como se lê no artigo 1º da medida provisória, tem curso legal, como a moeda corrente, servindo apenas como padrão de valor monetário. Trata-se, portanto, de original espécie monetária, válida para o referencial inflcionário. O real será o dinheiro, ou seja, meio de pagamento dotado de poder liberatório. Com isso preços, salários, encargos poderão ser pensados e expressos em URVs, mas o pagamento será em réis (ou reais, se quiserem).
Há muitas questões constitucionais a debater. Dou só um exemplo. A medida provisória mantém, no artigo 3º, o curso do cruzeiro real até que o Poder Executivo determine a primeira emissão do real. É disfarçada delegação de poder do Congresso ao presidente da República, que escapa aos limites em que a medida provisória é viável.
Contudo, as dúvidas jurídicas ou econômicas que o plano gera, não me impedem de acreditar que pode dar certo. Chega diferente dos outros. Nada foi imposto de cima para baixo. Tudo foi e será discutido. Os interesses conflitantes encontraram acolhida no debate. Não houve confiscos. As sacratíssimas cadernetas de poupança foram respeitadas. O ministro Fernando Henrique honrou suas promessas.
Pelo menos a democracia tem de estar em festa. Para quem viveu as angústias da ditadura, é motivo mais que suficiente para uma dose de otimismo. Pode ser sonho, mas o paradoxo dos sonhos é uma delícia.

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