São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Segurança e felicidade

Uma das piores heranças legadas pela colonização portuguesa no Brasil foi ter transformado a busca da segurança em aspiração nacional. Ser feliz resume-se a estar seguro. Não comporta uma dimensão de crescimento individual e de superação de desafios.
Não teve setor da vida nacional que não tenha se rendido ao canto de sereia da segurança –de preferência paga pela viúva, o contribuinte.
Na acumulação de capital, privilegiou-se por muito tempo o bem patrimonial, que não cria riquezas, mas também não vira pó. Como opção profissional, durante anos não houve emprego mais ambicionado que o de funcionário público, que não permitia grandes vôos profissionais, mas garantia estabilidade de emprego, pouca cobrança e uma aposentadoria integral.
Para muitos setores, a ambição maior, logo no primeiro dia de trabalho, é chegar a uma aposentadoria precoce, e gozar docemente a vida ainda de posse de todas suas energias.
Na raiz dessa cultura, sempre esteve um estado patrimonialista, que se constituiu no instrumento final da busca da segurança geral. A falta de uma cultura de cidadania no país deixava o Estado completamente à disposição do grupo político que o conquistasse. Bastava ter um amigo bem situado, para garantir a felicidade eterna.
Dos grotões às universidades, essa perspectiva acabou estimulando a visão de que o processo político consistia em organizar grupos, que passavam a atuar politicamente, com o objetivo de controlar o poder, alijar os adversários e livrar-se de qualquer forma de disputa e questionamento futuros.
Politização e criatividade
Esse sentimento assumiu diversas formas. Nas profissões liberais, resultou na montagem de associações corporativas, cuja função consistia basicamente em defender a categoria das cobranças do público. Nas estatais, na elaboração de um discurso tratando-as como propriedade do povo brasileiro –mas sutilmente considerando como povo efetivamente brasileiro apenas as corporações que dominavam as estatais.
Por não expor as pessoas a cobranças e a desafios, esse sistema acabou emperrando toda a vida institucional e, durante um certo tempo, a vida empresarial.
Onde imperou a politização, matou-se a criatividade, impediu-se o florescimento de talentos autênticos trazendo sangue novo para o setor. Houve o gradativo emboloramento das instituições, do Judiciário às universidades, dos sindicatos ao sistema político vigente.
Alguns setores acabaram rompendo essa inércia, justamente por terem sido submetidos mais cedo à competição e ao julgamento externo. A crise e a abertura comercial despertaram o meio empresarial nos setores concorrenciais. O amadurecimento de um mercado de consumo moderno estimulou a competição entre jornais, rompendo com décadas de acomodamento. A disputa e a pluralidade sindical ajudaram a criar sindicatos mais comprometidos com temas objetivos.
Competição
Quando um setor, ou pessoa, é obrigado a entrar em um ambiente competitivo, a primeira reação é de desconforto. Parece que o mundo desaba aos seus pés. Desmorona a falsa convicção de que o acomodamento é que traz segurança.
No momento seguinte, a competição desperta a pessoa. O que se vê a seguir é uma mutação fantástica. A pessoa recupera sua auto-estima, passa a buscar o aprimoramento pessoal, fixa objetivos mais concretos para sua vida, do que a mera aposentadoria, cresce como pessoa e como profissional.
Há mortos pelo caminho. Mas, no fim do processo tem-se um setor mais maduro e saudável. No fundo, a grande luta pela modernização passa pela erradicação, em todos os setores, desse falso sentimento, de que existe a segurança absoluta. O que existe é a luta diária, fazendo de cada lutador um forte.

Texto Anterior: Permanece a Ufir; Darf em cruzeiros reais; Recolhimento do IR/Fonte; Impostos e a URV; Notas fiscais e a URV; Poupança e a URV
Próximo Texto: Governo vai determinar o uso compulsório da URV
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.