São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A grande farsa do combate aos oligopólios

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "Plano Real" está nas ruas. Pode-se discordar, e totalmente, de suas diretrizes. Pode-se considerar um absurdo que o país seja submetido a nova experimentação, autoritária, por vaidades e ambições de alguns. Por maior que seja a discordância, porém, já não há possibilidade de recuo, pois a desmoralização do governo traria consequências imprevisíveis.
Só resta, então, esperar que o Congresso evite aberrações contidas no plano. E que a sociedade esbraveje, exija providências que realmente resultem em combate à inflação, e que a equipe FHC continua com dificuldades de adotar.
A queda da inflação pode ocorrer, se houver mudanças de comportamento, como se segue:
Alimentos - Há exatos três domingos, as linhas finais desta coluna afirmavam que, já na quarta-feira de cinzas, o ministro FHC levaria uma paulada na cabeça com os preços do feijão. Base para a previsão: a seca dizimou a colheita de 400 mil toneladas da região de Irecê, Bahia, reduzindo-a a 20 mil toneladas, ou 5% do previsto. Quase nada.
Tradicionalmente, são essas 400 mil toneladas que garantem o consumo no Sul/Sudeste em fevereiro/março. Elas evaporaram, os preços teriam que disparar. A equipe não tomou conhecimento da escassez para minimizar seus efeitos, nem antes -nem agora.
O desastre dos preços do feijão é um exemplo da grande falha das equipes de economistas que se propõem a combater a inflação com choques espantosos. As equipes parecem (parecem, repita-se) muito preocupadas com oligopólios, cartéis e outras distorções.
Mas disparadas brutais de feijão, batata, soja, legumes, também fazem os índices de inflação de determinados meses explodirem, e fazem a inflação continuar em alta nos meses seguintes -porque a correção monetária, a indexação, provoca a alta dos demais preços.
Sem lobby - O presidente da República deveria escolher já alguém para acompanhar os preços dos alimentos "in natura", para evitar a repetição de episódios como o do feijão. É preciso alguém que se preocupe com os interesses do produtor e do consumidor, isto é, não pode ser um nome ligado ao lobby agrícola, que cruza os braços diante de alta de preços, porque aumentam os ganhos dos produtores.
Há técnicos, como o economista Fernando Homem de Mello, que estudam permanentemente as questões agrícolas, do plantio à venda no varejo, e têm isenção suficiente para priorizar o combate à carestia e não outros interesses.
Ditadura - O aumento de 46% nas tarifas de energia elétrica, que provocou indignação, mostra perfeitamente a necessidade de vigilância do Congresso e da sociedade, e mostra também que, ao contrário do que a imprensa tem apregoado desde o começo do governo Itamar, um ministro da Fazenda todo-poderoso é uma distorção absurda. Uma fonte de prejuízos, ora para o Tesouro (a sociedade), ora para o consumidor. Um foco de inflação, com decisões das quais acha que não precisa prestar contas.
O ministro FHC concedeu reajustes na faixa dos 40% para pequenas concessionárias da Amazônia. Para a Cesp, do governo paulista, autorizou aumento de 48,9%. Em janeiro, a empresa do governador Fleury já ganhara outro aumento, de 50,2%. Em novembro, alguma coisa parecida.
Na época, esses aumentos não provocaram reação, apesar de serem um desmentido às afirmações do ministro FHC, de que as tarifas de energia subiriam 8% acima da inflação até outubro. No palanque, a promessa de contenção. Nas negociações com governadores, a farra. Nada como ser um ministro-ditador. Pode adotar a política do "é dando que se recebe", às custas da classe média e do povão.
Exploração – O Instituto de Economia do Setor Público é um órgão técnico do governo paulista. Seus cálculos sobre o preço da energia elétrica cobrado pela Cesp estão de estarrecer. Em 1989, a tarifa do quilowatt/hora era de US$ 43 para as residências (classe média, basicamente) e US$ 21 para a indústria.
Com a política de recuperação das tarifas do governo Collor, a residencial subiu para US$ 62 em 91 e US$ 72 em 92. Com Fernando Henrique/Fleury, passou para US$ 92 em dezembro último e US$ 97 em janeiro –antes do novo salto, agora em março.
Em síntese, de 89 para 94, o preço da energia paulista para residências passou de US$ 43 para US$ 97. Mais de 120% de aumento real, acima da inflação.
Para a indústria? De US$ 21 para US$ 23. É isso mesmo. Entre sorrisos, o ministro FHC diz que autorizou aumentos para a Cesp porque havia defasagem. Entre sorrisos, o governador Fleury arranca o couro do consumidor e ganha o apoio dos empresários para seus sonhos políticos. E garante votos, na Câmara, para os projetos do ministro sonhador. Tudo, em meio à conversa fiada do "combate aos oligopólios...".
Reviravolta – O economista José Milton Dallari foi convidado pelo ministro FHC para cuidar da "guerra dos preços", negociando e teoricamente procurando evitar aumentos abusivos dos célebres oligopólios. Ele chegou a ser o responsável por essa mesma área, de controle de preços, na equipe do ex-ministro Delfim Netto.
Ao deixar o governo, Dallari assumiu a função de consultor e ocupa hoje o posto de presidente executivo da Associação de Produtores e Exportadores de Carne. Espécie de presidente efetivo, com conhecimentos técnicos, é ele quem efetivamente orienta o setor sobre questões como política de preços (isto é, que preços cobrar...), concentração empresarial (formação de cartéis e oligopólios), etc. Além disso, Dallari é também consultor, isto é, "conselhador" sobre os mesmos temas, de dois setores similares: indústria de alimentação (Abia) e supermercados (Abras).
Suspeição – As ligações de Dallari com setores empresariais não seriam suficientes, por si só, para colocar em dúvida seu empenho em evitar abuso nos preços. Afinal, se FHC e assessores "progressistas" mudaram tanto (e põe "tanto" nisso), Dallari também poderia assumir novas atitudes. As evidências não mostram isto.
Cumplicidade – Logo ao assumir, Dallari foi colocado diante de críticas à disparada dos preços do leite –e derivados. Ele reforçou a versão, divulgada bobamente pela imprensa, de que a culpa era dos –pasme-se– "padeiros", que tinham aumentado sua margem de lucro em 100%.
Ora, o sr. Dallari é um técnico competente, assessor da indústria de alimentação. Sabe que o setor de leite e laticínios está sendo dominado por cartéis, grandes grupos nacionais e multinacionais.
Nos últimos anos, eles até compram pequenas fábricas de queijos ou usinas de pasteurização no interior, e chegam a fechá-las –para ficarem como únicos compradores do leite. Aviltam preços para o produtor. E cobram preços de ouro pela venda ao consumidor.
Naquele exato momento em que o preço do leite disparava para o consumidor e chegava aos CR$ 275,00 o litro, o produtor estava recebendo menos de 10% desse valor, ou CR$ 24,00 pelo litro "extra-cota"...
Detalhe que o sr. Dallari (também) não deve ignorar: a Parmalat vem avançando no mercado, comprando pequenas e médias empresas, com financiamento. De quem? Segundo reportagem da Folha, do próprio Banespa. O governo financia a formação de cartéis e oligopólios. Sorrisos de lá, sorrisos de cá.
Na entrevista de lançamento do Plano FHC, o economista Pérsio Arida fez comovente declaração de crença no funcionamento do mercado. O plano vai dar certo –disse ele– porque as empresas não vão poder aumentar preços, porque quem aumentar não vai conseguir vender. É muita fé no funcionamento de uma economia de mercado perfeita, sem cartéis e oligopólios. Muita teoria.
Arida poderia ter feito uma consulta, ali mesmo, ao seu colega de equipe, Dallari. Durante todo o ano passado, os preços do boi e da carne, em dólares, estiveram muito acima (de 30% a 40%) de sua média normal. Mesmo com a concorrência do frango (gigantesca expansão na produção) e da carne de porco, a carne bovina encareceu também proporcionalmente, isto é, um quilo do produto passou a "comprar" maior quantidade dos produtos concorrentes (preços relativos). Capacidade de impor preços.
Moral da história: o combate aos oligopólios tem sido uma farsa e nada indica que vá mudar. O brasileiro só deve acreditar se, amanhã, os jornais estamparem uma manchete parecida com esta: "Dallari convoca Dallari para explicar especulação com preços da carne e do leite". O resto é farsa.

Texto Anterior: Governo vai determinar o uso compulsório da URV
Próximo Texto: Plano bom, resultados incertos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.