São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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A turbulência dos preços com três moedas

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

O Brasil tem atualmente três moedas e não duas, como supõe o modelo implícito da equipe econômica. Uma é o cruzeiro real, moeda de pagamento. Outra é a moeda indexada do mercado financeiro, que funciona como reserva de valor. A terceira é uma moeda de conta recém-criada.
A URV, criada por medida provisória, é uma inovação imaginativa, mas altamente problemática. Como moeda de conta, carrega nas costas a moeda velha, traz no ventre o ovo da serpente da moeda financeira e pretende ser uma ponte pênsil para o futuro em direção a uma moeda forte, única e desindexada, o real.
A URV, porém, não é uma moeda de conta estável. É uma média móvel de três índices, sem ponderação conhecida. É, na verdade, um índice que flutua entre índices.
A estrutura dos índices que compõem a URV só é conhecida por técnicos, empresários e agentes do mercado financeiro. Antes da URV eles podiam estimar, a cada semana, as expectativas de inflação futura em cruzeiros reais, projetando o índice de seu interesse.
Digamos, para resumir, que o IGP-M da FGV era o índice usado pelos banqueiros. O da Fipe, que mede a evolução do custo de consumo da classe média de São Paulo, podia ser usado mais facilmente por todos os agentes porque é calculado a cada semana. O IPC do IBGE, que é nacional, permitia o cálculo da Ufir, índice que corrige os impostos em todo o país.
Quando a inflação acelera, os índices de preços calculados pelas três instituições não convergem, não por causa de incompetência ou desonestidade, mas porque a estrutura de cada índice tem uma composição diferente.
Os três índices que compõem a URV foram analisados pela "Gazeta Mercantil" no dia do plano. Os resultados foram os seguintes: o índice usado pelos banqueiros foi, em média, o mais alto durante 1993, fortemente influenciado pela evolução dos preços por atacado dos produtos industriais e agrícolas. O índice que corrige os impostos foi, em média, mais baixo. E o da Fipe de São Paulo ficou no meio.
O dólar flutuou sistematicamente entre os três índices, como aparentemente continuará com a URV. Deste modo, o dólar perdeu para a moeda financeira e deixou de ser reserva de valor para a classe alta.
O plano, ao adotar o congelamento dos salários em URV, sem fazer o mesmo para os preços, é o anti-Cruzado em todos os sentidos. O Cruzado, por causa do efeito estatístico dos índices e do congelamento de preços, teve uma deflação no primeiro mês e quatro meses de estabilidade para negociar um ajuste de preços relativos, o que não conseguiu.
O Plano FHC terá um prazo muito mais curto para obter a convergência dos índices, ou seja, a estabilidade da URV. No plano de 1986 ocorreu, porém, um ajuste automático de contratos que relativa a inflação futura embutida pelos credores. No plano atual, a famosa tablita foi substituída por uma série de medidas que culminam com o já famoso artigo 36 da medida provisória, objeto da ira dos banqueiros.
Os autores do plano, ao deixarem voluntária a adesão dos empresários à URV, queriam apenas que as remarcações de preços desacelerassem, permitindo a manutenção de uma taxa média de inflação em cruzeiros reais próxima à última taxa anunciada.
Esta lhes pareceu a maneira mais suave de inercializar a inflação, preparando o caminho para a introdução da nova moeda. Como a inflação vinha crescendo em média 8% por semana nas três primeiras semanas de fevereiro, bastaria que os empresários remarcassem os preços abaixo dessa taxa para que os índices tendessem a convergir rapidamente, ainda em março.
Isto seria possível e até natural porque os salários foram expurgados compulsoriamente da aceleração de fevereiro. Assim, a URV e o câmbio foram calculados diariamente na primeira semana de março, apontando para uma taxa de inflação que deveria variar entre 38% e 40% em cruzeiros reais. Como de hábito, o efeito das taxas de juros sobre a formação de preços não foi considerado.
Entretanto, a primeira estimativa conhecida aponta para um crescimento dos preços de 45% até 28 de fevereiro. Portanto, se os preços não forem compulsoriamente colocados em URV, daqui em diante o plano periga desestabilizar-se radicalmente.
Para complicar ainda mais a possível estabilidade da URV e aumentar a incerteza de todos os agentes, os títulos financeiros são obrigados a passar para a URV dentro de 15 dias, desde que o seu prazo de maturação ultrapasse um mês.
Com os olhos postos no dia D, os banqueiros recusam-se a rolar os títulos cambiais do Tesouro e os pós-fixados em IGP-M. Tentam convencer o ministro e a opinião pública de que perderão cerca de US$ 1,5 bilhões na passagem para a nova moeda. Estimativa curiosa, dado que não se sabe qual o valor da URV na desconhecida data da passagem.
A mídia tenta, em contrapartida, convencer a população de que os trabalhadores-consumidores não têm nada a perder com a conversão obrigatória dos salários e os preços livres, reservando algumas ressalvas para o comportamento dos oligopólios. Já o ministro, impressionado pela remarcação abusiva dos supermercados, diz que eles não colaboram.
Nesta luta de todos contra todos não adianta culpar os supermercados. Os preços dos seus fornecedores não estão em URV e eles já sabem que terão de fazer as novas encomendas com contratos que embutem uma taxa de juros nominal possivelmente superior a 47% ao mês. Assim, não param de remarcar, esperando que o governo arbitre a taxa de juros e obrigue os fornecedores a ficarem em URV.
Isto mostra mais uma vez que, se as forças organizadas de um mercado oligopolístico, sem coordenação, são difíceis de conter, mais difícil ainda é controlar as forças cegas dos chamados mercados competitivos, quando não existe uma única moeda estável e, das três existentes, os agentes só podem usar a moeda financeira para ganhar dinheiro.
As pistolas de remarcação dos supermercados são apenas os tiros cegos disparados durante a noite que atingirão o consumidor no dia seguinte. O governo teria de segurar primeiro os canhões dos pesos-pesados da economia e, em particular, ganhar a queda de braço com o mercado financeiro.
Neste jogo, a adesão voluntária é pouco provável e, quando ocorre, suspeita. O único setor que passou voluntariamente para a URV foi a indústria automobilística, sem consultar os sindicatos nem reunir a câmara setorial. O resultado conhecido é que o preço dos automóveis já tem embutida uma razoável inflação em URV.
Parece haver uma só saída: os preços têm de passar obrigatoriamente à URV e os juros têm de cair. Dallari e o Banco Central têm de sair das ameaças e começar a agir rapidamente para salvar o plano.

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