São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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A URV em busca da estabilidade tardia

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA

A criação da URV levantou a poeira. Depois de tantas frustrações e planos de estabilização fracassados, nada mais natural que a dúvida: o Plano FHC vai dar certo? A pergunta parece ser simples e direta. Na verdade, ela esconde não uma, mas várias questões distintas.
O que vem a ser exatamente o Plano FHC –Cruzado remediado, dolarização envergonhada, arrocho desavergonhado, estelionato eleitoral? As análises parecem ser tantas quanto os interesses e ambições em jogo, e isso apesar –ou por causa– do fato de que aspectos decisivos do plano permaneçam desconhecidos.
Quais serão, por exemplo, as regras de criação e destruição da nova moeda? Fora isso, o que seria, no caso, "dar certo"? A avalanche de interpretações, opiniões e previsões desencontradas dos últimos dias causou pelo menos tanta perplexidade quanto o próprio plano. Em que acreditar?
Para começar, duas rápidas observações metodológicas. Quando se trata de prever o futuro, não há conhecimento certo. Nenhuma quantidade de conhecimento sobre o passado e o presente permite tirar conclusões sobre o futuro com a mesma segurança com que se pode demonstrar, por exemplo, que a somatória dos ângulos de um triângulo é 180 graus.
Qualquer previsão sobre o que ainda vai ocorrer, por mais trivial que seja, é alguma coisa contingente. Em relação ao futuro, o máximo que se pode fazer é atribuir probalidades de forma sensata.
Quer dizer: mesmo que soubéssemos exatamente o que é o Plano FHC, qualquer previsão sobre seus resultados seria um prognóstico contingente, ou seja, baseado em premissas sobre as quais não se pode ter absoluta certeza.
As incertezas, no caso, são muitas. Além da indefinição do plano, há o problema crucial da implementação. Até que ponto o Executivo terá condições de poder e competência operacional para realizar na prática tudo aquilo que está no papel? E, mesmo supondo que ele faça tudo o que pretende, como reagirão os demais agentes econômicos, a começar dentro do próprio setor público?
A outra observação metodológica deriva da primeira. Quando o assunto é incerto mas nos interessa de perto, a tendência natural do homem é compensar a insegurança cognitiva com a força deas emoções. É preciso, no entanto, cuidar para que isso não aconteça.
Vale lembrar aqui o princípio baconiano, ilustrado de forma magistral por Bertrand Russel: "Nenhuma opinião deveria ser defendida com fervor. Ninguém mantém fervorosamente que 7 x 8 = 56, pois se pode mostrar que isto é o caso. O fervor apenas se faz necessário quando se trata de sustentar uma opinião que é duvidosa ou demonstravelmente falsa".
Quer dizer: qualquer que seja a nossa opinião sobre o futuro do Plano FHC, é preciso manter a necessária reserva. A regra básica é desconfiar daqueles que se pronunciam com excessivo fervor e veemência sobre o tema –sinal inequívoco de que sucumbiram à propensão natural de transformar suas próprias emoções em critério de verdade.
"Uma crença forte revela apenas a sua força, e não a validade daquilo em que se acredita". No fundo, é o que dizia meu pai evocando uma gema da sabedoria mineira: "Todo exaltado será um arrependido".
Dito isto, resta-me agora atacar de frente a questão inicial: quais as chances de que o Plano FHC traga a estabilidade monetária sonhada? À luz do que se sabe sobre o plano, acredito que existem basicamente três cenários em jogo, sendo um deles com probalidade de ocorrência bem maior que os outros.
No pior cenário a história se repete: e de novo como farsa. O governo Itamar termina como o governo Sarney. O Plano FHC torna-se algo semelhante ao que foi o Plano Verão. Promessas grandiloquentes de austeridade são o prelúdio da inoperância prática e desaguam em resultados efêmeros.
A desindexação não cola e o ajuste fiscal, sabotado de todos os lados pelo frenesi eleitoral, não sai do papel. A inflação despenca por um ou dois meses, mas apenas para voltar com força redobrada no segundo semestre. O processo eleitoral fica seriamente prejudicado e o novo presidente assume no limiar de uma hiperinflação.
Simétrico a este, há um cenário de triunfo e consagração para a equipe econômica. O pesadelo acabou. O Plano FHC é o plano para acabar com todos os planos. Partiu de uma concepção correta do problema, contornou as restrições e armadilhas no caminho, beneficiou-se do apoio do setor privado e do senso de responsabilidade dos ocupantes de cargos públicos e foi implementado com firmeza e atenção ao detalhe.
O ciclo dos planos de estabilização fracassados é página virada da nossa história. O processo eleitoral transcorre em clima sereno e o novo presidente assume no limiar de uma nova era de crescimento.
Finalmente, existe um cenário intermediário –aquele que me parece o curso mais provável das coisas. O Plano FHC não é outro Plano Verão. Ele cumprirá um papel relevante, evitando que se repita agora o descontrole inflacionário do final do governo Sarney. Isso não significa, contudo, que ele obterá o sucesso sonhado na conquista da estabilidade em caráter permanente.
Falta-nos, ainda, avançar no equilíbrio financeiro do Estado e no processo de liberalização, que são os verdadeiros fundamentos da moeda estável. Consolidar a vitória sobre a inflação será o primeiro desafio do próximo presidente eleito.
Como cidadão, temo o primeiro cenário e torço para que o segundo aconteça. Como analista, acredito que o terceiro seja de longe o mais provável e que o Plano FHC terá cumprido a sua missão de garantir um mínimo de estabilidade para que a nação atravesse este período delicado sem traumas e rupturas de qualquer espécie.
Imagino que a inflação deverá permanecer abaixo de 5% ao mês durante alguns meses, mas com tendência à aceleração gradual no segundo semestre. Com alguma sorte chegaremos, na virada do ano, com um dígito mensal.
Do ponto de vista estrito da estabilidade, o ideal para o país seria que o ministro Fernando Henrique permanecesse em seu cargo até a posse do novo presidente. A política de estabilização não seria vista como trampolim de campanha e ficaria a salvo do chumbo eleitoral.
Agindo assim, o atual ministro conquistaria a autoridade moral necessária para cobrar disciplina do resto do setor público e dos bancos oficiais em particular.

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