São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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IBERÊ CAMARGO

MARIO CESAR CARVALHO; AUGUSTO MASSI
DO JULIAN GREEN.

Folha - Dentro dessas preocupações, que escritores ajudaram
a moldá-lo?
Iberê - "Les Thibault" (Roger Martin du Gard, 1881-1958, prêmio Nobel de 1927) um livro que me impressiona muito, "Guerra e Paz", de Tolstói, um Dostoiévski.
Sempre escolhi para ler as melhores coisas, porque o sujeito tem uma obra imensa e não posso passar minha vida lendo. Mas certos livros marcam, como "Leviatã",
Folha - O sr. lia poesia?
Iberê - Não. Eu gosto muito do Quintana. Acho que é um poeta que não se propõe a escrever uma epopéia, mas escreve o dia-a-dia e ele é grande. Nem todos nascem
para fazer epopéia.
Folha - Nem todos nascem para Camões.
Iberê - Isso acontece com os pintores também. Acho que um dos fracos do Portinari foi querer ser muito, crescer demais. Quem prejudicou muito o Portinari foi o Picasso. O Goeldi foi um grande gravador, um grande artista, porque soube ficar no seu mundo, o mundo simples de pescadores, dos córregos, das casas vazias, das janelas. Tem o corredor de fundo e tem o corredor de cem metros. Cada um tem que saber de que tipo é se não vai dar em bobagem.
Folha - O sr. nunca teve vontade de fazer esculturas?
Iberê - Não, fui fazer umas tentativas, mas não tenho habilidade manual no espaço. É uma coisa estranha.
Folha - Chegou a tentar?
Iberê - Eu estava doente, o Vasco Prado trouxe um barco, eu fiz uma coisa lá, mas não sei mexer, está inacabado. Na escola, sabia esboçar a modelagem mas não
conseguia fazer o acabamento. É um certo tabu. Eu talvez serei o último pintor do suporte, quando dizem que já não há mais suporte. Minha habilidade está no plano. Aí
sinto que tenho um conhecimento, mas sempre é pouco.
Folha - O pintor Marco Gianotti diz que em suas telas posteriores a 1980 a vida está suspensa, já não há mais ação, como se toda ação humana estivesse contida na tragédia de 1980. Segundo ele, seu trabalho pode ser interpretado como uma crítica às ações humanas. Confere?
Iberê - Eu tenho aí esse último quadro que foi exposto, aliás, há duas versões desse "Na Terra e no Vento". O título foi o Ronaldo Brito que me deu. Tem uma mulher, uma figura, uma imagem que parece morrente, agonizante, não se sabe bem, é ambíguo. E, no fundo, uma bicicleta assim já posta em descanso. E aí fiquei com
esse problema que eu estou hoje. Eu fiquei pensando que às vezes a gente aponta coisas que vão acontecer. Tem uma versão que não foi para São Paulo, que está aqui em Porto Alegre.
Folha - Esse quadro é aquele que o sr. falou que pintou a morte sem querer?
Iberê - Não, isso é outra coisa. Porque a minha pintura foi sempre muito autobiográfica, tudo o que eu fiz foi vivido. Eu acho que eu podia ter escrito uma história, que fosse a minha história e eu a escrevi sem saber. Eu tenho um texto que eu chamei "Hiroxima". Aí o pintor se imagina em Hiroshima, quando houve o lançamento. Aí vai se desenvolvendo toda a sua tragédia, porque uns morreram no
instante, outros morreram depois, à medida da distância que estavam da bomba. O pintor estaria a uma distância maior, mas no mesmo tempo. Aí vêm aquelas noites indormidas, a tal de saliva, a respiração e todos aqueles problemas, que você vai encontrar descrito nesse texto. É um pouco desagradável falar o que estou falando,
mas é que você coloca a questão. Tenho que responder.
Folha - O sr. acha que esse último trabalho foi uma...
Iberê - Premonição?
Folha - É, uma premonição.
Iberê - Pois eu tenho medo que o pintor tenha razão. Eu fiz duas versões do quadro e a Maria (sua mulher) dizia: "Ah! não mexe nesse quadro, está tão bom." Eu mexia e dizia: "O pintor sempre tem razão". Eu tenho medo que desta vez também o pintor tenha razão. Medo em termos, porque tudo passa.
Folha - É um quadro agônico.
Iberê - É agônico. Depois das evocações das mesinhas, dos carretéis esboroando, vem aquela imagem que você não sabe se é ironia, se é piedade, é muito ambíguo. Talvez indique que a vida parou ali, está cristalizada no sentimento. Mas chega um momento em que incomoda, interroga.
Folha - Mas a questão da suspensão da vida não pode ter a ver, não só nesse quadro, com a tragédia de 1980?
Iberê - Não. O que aconteceu comigo é claro que marca, que machuca, que dói, que é horrivel, mas a vida é essa surpresa, é o inesperado. As coisas marcam, mas continuamos caminhando.
Folha - Isso não trouxe marcas na pintura do sr.?
Iberê - Não, acho que essa tristeza sempre existiu. Sempre foi triste, foi solitária.
Folha - Tem crítico que diz que a pintura do sr. renasceu após a tragédia de 1980.
Maria (mulher de Iberê) - Antes da tragédia o Iberê já estava inserindo figuras. Tinha um quadro, inclusive, eu acho que era o teu retrato.
Folha - A volta à figura não foi determinada pela tragédia?
Maria - Não.
Iberê - Quando eu fazia os carretéis, aqueles espaços, aquele chão trabalhado, eu estava muito impregnado da lembrança da terra, dos quintais, das coisas que estão
sepultadas, que a terra cobre. Eu sentia fisicamente, vivenciava as coisas na minha cabeça. Nunca fiz uma forma gratuita, um gesto em vão. Fiz sempre uma coisa ligada a uma experiência muito profunda minha. Este é o suporte da minha pintura, esse contato direto com uma realidade, que é uma realidade subjetiva, mas que é tão real
quanto esta mesa. Mas a gente escreve uma história e faz uma premonição, não sei.
Folha - O sr. poderia explicar a diferença do seu trabalho na gravura e na pintura?
Iberê - Minha gravura e minha pintura sempre caminharam de forma paralela. Nem podia ser desligada. Porque eu sempre pinto o agora. Mas como não sou um saco
vazio, esse agora tem muita coisa dentro, que vem à tona, que participa do hoje. Quando eu pinto o agora, estou pintando o ontem e já abrindo espaço para o futuro. É por isso que eu digo que ninguém pode caminhar sem colocar um passo na frente e outro atrás. Esse negócio de caminhar pulando não dá. Por isso que esse desejo de
ruptura com as coisas é como querer tirar uma perna. Vai caminhar pulando como um sapo?
Folha - Mas o modernismo, do qual o sr. descende, defendeu a ruptura. Picasso achava que podia pular com uma perna só. Iberê - Sim, mas dizer é uma coisa e fazer é outra. Porque eu te mostro que nas diferentes fases Picasso sempre foi um clássico, com todos os valores da pintura, as passagens que têm os mestres, Van Gogh fechando a forma. Acho que ele mais tirava da pintura do que da própria realidade. Não podia pular com um pé só. Isso é uma
bravata. É engraçado, mas a graça nem sempre é verdadeira. O Renoir dizia: "Minhas figuras não pensam". Aí eu olhava o quadro e dizia: "Pensam sim, só que pensam bobagens". Não tem o pensamento de um Rembrandt, que tem uma figura pesada, meditativa.
Folha - Suas telas pensam?
Iberê - Eu acho que sim.
Folha - O sr. tem preocupações filosóficas?
Iberê - Não é bem preocupação filosófica. Mas acho que uma obra, quando quer ser um pouco maior, não pode abrir mão das coisas. Não se cresce esvaziando, se cresce acrescentando. O que me preocupa muito na vida é que o homem tenha mais importância do que as coisas, o que não está acontecendo. Daí todo esse caos, essa ganância, enfim, esse mundo mau que criamos.

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