São Paulo, domingo, 6 de março de 1994 |
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Temo que não dê certo
CARLOS HEITOR CONY RIO DE JANEIRO – Contei há tempos a história do velhinho do Iseb. Não é por falta de assunto que volto a ele e à sua história. Época: final dos anos 50, euforia das metas de JK, o Brasil parecia chegar lá. Foi preciso inventar um instituto superior de estudos brasileiros (Iseb) para explicar à plebe o que estava acontecendo. A turma se reunia duas vezes por semana, intelectuais, artistas, empresários, convidados ilustres como Sartre, o diabo.Apesar da euforia geral, queria-se mais: melhor distribuição de renda, alinhamento com os povos afro-asiáticos, reforma agrária radical, essas coisas. Discutia-se até o alvorecer –depois das duas da manhã é que surgiam as grandes idéias, as redentoras análises. Certa noite, a pauta estava substanciosa: os novos rumos do campesinato latino-americano, o programa da Aliança Para o Progresso, a taxa de câmbio, a solidariedade a Tricontinental reunida na Argélia, um projeto que transitava no Congresso isentando multas de alguns sindicatos e a anunciada visita de um Secretário do Tesouro americano. Às tantas, votou-se moção sugerindo ao governo uma intervenção diplomática não sei se contra a Bolívia ou o Paraguai por causa de incidentes na fronteira. Tudo misturado, a sessão ia ser encerrada quando o velhinho pediu a palavra. Houve aquilo que nos debates parlamentares figura sob a rubrica "murmúrios, movimento geral de atenção". Ninguém sabia quem era o velho. Vinha a todas as reuniões, sempre calado, parecia vagamente que morava em Niterói. Com a voz trêmula da velhice e a exaltação acumulada dos oprimidos, dedo espetando o ar, ele proclamou de uma das últimas filas: "Tá tudo muito confuso! Temo que não dê certo!" O velho já deve ter morrido, morasse ou não em Niterói. Mas ouço sua voz, vejo seu dedo espetando o ar, como se quisesse furar o núcleo de sua perplexidade. Tantos anos depois, somos milhões com o dedo no ar, proclamando o mesmíssimo espanto: esse negócio de URV tá muito confuso. Teme-se que não dê certo. Texto Anterior: Ainda falta o segundo Próximo Texto: Maluf chama PT de terrorista Índice |
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