São Paulo, quinta-feira, 10 de março de 1994
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Buster Keaton faz graça da desgraça

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Filme mudo e televisão não combinam muito e a única exceção são as comédias, para as quais, diga-se, o cinema parece ter sido inventado. Mesmo sem pianolas ao fundo, as comédias do período silencioso funcionam a mil maravilhas no vídeo. Nada parece abalar a sua força primitiva e o seu jeito ingênuo de provocar risadas. As de Buster Keaton (1895-1966), então, nem se fala: resistem a tudo, até porque pouco dependem de desvios sentimentais. São puros exercícios de acrobacia e inventividade, sem as ambições transcendentais de Chaplin.
"Nossa Hospitalidade", de 1923, é o segundo longa de Keaton. Creditado como co-diretor, Jack G. Blystone limitou-se a manter a ordem atrás da câmera quando o cômico entrava em cena. Só a partir do terceiro longa, "Bancando o Águia" (Sherlock Jr.), Keaton abriu mão de um auxiliar. A exemplo do primeiro, "A Antiga e a Moderna" (The Three Ages), co-dirigido por Eddie Cline, e do oitavo, "A General", é uma paródia do cinema visionário, mas pomposamente dramático de David W. Griffith.
"A Antiga e a Moderna" estava para "Intolerância" como "A General" para "O Nascimento de uma Nação". Em "Nossa Hospitalidade", Keaton deixa em paz os épicos de Griffith e parodia as suas tragédias realistas. Inspirado pela histórica rivalidade entre as famílias Hatfield e McCoy –os Capuletos e Montequios do sul dos EUA na primeira metade do século passado–, Keaton inventou os Canfield e os McKay e com eles confeccionou uma farsesca variação de "Romeu e Julieta", dotada de "happy end". O Romeu é um McKay (Keaton) e a Julieta é uma Canfield (Natalie Talmadge), unidos por acaso numa viagem de trem tão rica de gags visuais quanto um desenho animado.
Antecipando o que Billy Wilder faria quatro décadas mais tarde, em "Quanto Mais Quente Melhor" –ou seja, construir uma comédia a partir de um funesto "fait divers", no caso o massacre do Dia de São Valentim–, Keaton inicia a sua com o trovejante assassinato de um McKay. Ousadíssimo, não se compraz em acumular gags, como era praxe na época. "Nossa Hospitalidade", a rigor, é um filme de aventuras cujos incidentes são permeados de situações e observações engraçadas.
Suas maiores sequências –a viagem de trem e a perseguição final, literalmente detonada pela explosão de um dique– antecipam o paroxístico funambulismo de "A General" e "Os Sete Amores". Não seria exagero ver em duas ou três tomadas de "Nossa Hospitalidade" uma antecipação do que Welles faria nos anos 40, com a ajuda de lentes com maior profundidade de foco. Keaton sempre esteve à frente do seu tempo. "Bancando o Águia", não custa lembrar, foi a primeira obra-prima do cinema metalinguístico.

Vídeo: Nossa Hospitalidade
Direção: Buster Keaton e Jack G. Blystone
Distribuição: Opção Vídeo (tel. 011/284-9479)

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