São Paulo, segunda-feira, 14 de março de 1994
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Raul Seixas é massificado como Jesus Cristo

MATHILDA KÓVAK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Adoro Raul Seixas. Na minha infância (OK, pré-puberdade), o seu "Gita" tocou, pela primeira vez, o meu ponto "G". Aquele que, como reza a filósofa Patricia Wuilhaume, sempre falha na hora "H". Todavia, "for God's sake", parafraseando os Beatles, eu diria que Raulzito está se tornando mais famoso –leia-se, massificado– do que Jesus Cristo.
Agora mesmo, aportaram sobre meu CD player cinco "biscoitos" (o equivalente a "bolachas", no que concerne a compact discs) que abrigam coletâneas de Raulzito. Cada volume contém mais ou menos o mesmo material: hits do autor. Ou clássicos. Ou ainda, "modernos". Malgrado Woody Allen afirmar que "moderno" compreende tudo o que se passou após Nietszche proferir a frase "Deus está morto" até os Beatles criarem "I Wanna Hold Your Hand".
O fato é que a clonagem fonográfica do artista marcha em frente, numa repetição perene, daquelas que fazem a gente acreditar que Janis Joplin só possuía fôlego para "Cry Baby" e Billie Holyday para "Fine and Mellow".
Porém, uma vez que Jorge Molder –aquele fotógrafo que irá expor na próxima Bienal– proclama que atualmente usamos apenas a ponta dos dedos, o CD nos cai como uma luva, e tal conjunto de antologias talvez tenha seu momento. Aos ouvintes neófitos, podem servir uma ou outra das manjadas coletâneas "Caminhos", "Metamorfose Ambulante", "Os Grandes Sucessos de Raul Seixas" e "Raul Rock". Aos mais provectos "Raul Rock Vol. 2", que inclui gravações ao vivo, nos festivais Phono 73 e Hollywood Rock.
Dia desses, estarão disponíveis ao consumidor: óculos escuros e colírio Raul Seixas, bonecos infláveis Raul Seixas, cigarros RS, creme destolheante Raul Seixas, perfume Chanel nº Seis-xas, Salão de Beleza Maluco Beleza. Até na Rita Lee já foi enfiado um cavanhaque Raul Seixas queixo adentro! Que o Seixas me perdoe as queixas, mas desconfio de que não era bem este o ideal de sua sociedade alternativa.
Assassinar para citar
"A sociedade assassina seus poetas, para então citá-los". Esta máxima de Raulzito serve exemplarmente de epígrafe (ou seria epitáfio?). É isto que vem acontecendo durante os anos que sucederam sua morte. Raul parecia saber que, a exemplo de Maria Callas, a felicidade não fora feita para ele.
Ele não foi apenas um compositor e cantor de rock'n'roll. Foi um bardo, um extemporâneo poeta maldito do século 19, digno de figurar em qualquer estante, ao lado de um volume de Baudelaire. E, a despeito de Marshall MacLuhan considerar o rock a literatura deste século, o melhor de Raul não se encontra somente no registro imperativo de seus discos. Mas igualmente em seu literário baú infinito. Buraco negro para além da consciência humana.
Desditosamente, esta segunda metade do século 20 repete a Idade Média, ou mídia, onde o instituído é obrigatoriamente mediano. E Raul não está mais aqui para usufruir dessa mina de ouro (de tolo?) em que se converteu sua obra. Ele pisou na mina. E explodiu.
Por falar em mina, Edmund Wilson dizia que a força que cria é a mesma capaz de miná-lo. Terá isto acontecido a Raul? É. A sociedade também cita ad infinitum seus poetas mortos, para então assassinar-lhes a poesia.

Coletâneas: 'Os Grandes Sucessos de Raul Seixas', 'Caminhos', 'Metamorfose Ambulante' e 'Raul Rock' (2 vols.)
Lançamentos: Polygram
Preço: Cr$ 10 mil (em média, o CD)

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