São Paulo, segunda-feira, 14 de março de 1994
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O amor não vale um tênis

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Há dias, saboreei um título que saiu na Folha. Lambi cada letra, cada número: "Silva, 64, esfaqueia Oliveira, 62, por causa de Maria, 60, na Paraíba". Corri os olhos texto adentro. Tinha pressa dos detalhes. Francisco Silva e João Oliveira, dois velhos trabalhadores rurais, foram às facas por Maria Alice.
Casado com a musa sexagenária, Silva ardeu de ciúmes ao saber que Oliveira teve com ela um caso. Desafiou-o para um duelo –esfaqueou-o impiedosamente. Senti-me diante de um episódio démodé, deliciosamente fora de moda.
Não fosse pela idade dos protagonistas, aquela notícia não teria saído. Aliás, abro um parêntese. A velhota deve estar nas nuvens. Se aos 60 é disputada na ponta da faca, imagine-se o que não fizeram por ela aos 20. Fecha parêntese.
Ainda degustava a má sorte de Oliveira quando bati os olhos em outra notícia, publicada na mesma página. Esta pareceu-me mais atual. "Anúncio prega morte de menores no Paraná", informava o título. O fato se passou em Londrina. Um jornaleco de classificados estampou um apelo pouco usual: "Mate um menor infrator. Apoio - comerciantes vitimados".
Súbito, a reportagem sobre o trio amoroso da Paraíba pareceu-me ainda mais antiquada. Na era dos horrores variados, dos assassinatos de crianças, das chacinas impessoais do Rio, na fase do massacre animal do Carandiru, Silva furou Oliveira. Em tempos de ódio, parecia decidido a demonstrar que a morte por amor ainda vive.
O noticiário do Brasil de 60 milhões de pobres reserva cada vez menos espaço para os crimes passionais. A variedade de mortos transforma o defunto romântico numa notícia em extinção.
Banalizou-se a morte, eis uma verdade irrefutável. Hoje, tira-se uma vida para roubar um par de tênis usado. Com notícias assim, o crime por amor é algo banal. Para os jornais de nossos dias, o amor vale menos que um Reebok desbotado. Insisto: não vale um Adidas com chulé. A propósito, o esfaqueado da Paraíba não morreu. Hospitalizado, está monotonamente fora de perigo.
Mata-se por qualquer coisa. Pode-se beijar o meio-fio por um relógio, por alguns parcos vinténs. Até mesmo um par usado de tênis é motivo para morte. O fel que permeia o cotidiano faz do crime por amor uma quase utopia, uma exceção gritante. Para os jornais de hoje, o amor vale menos do que um Reebok desbotado. Insisto: não vale um Adidas com chulé. Tem-se a impressão de que o coração há muito não expede um atestado de óbito. A propósito, Oliveira, o esfaqueado da Paraíba, não morreu. Hospitalizado, está monotonamente fora de perigo.

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