São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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'Eu sempre quis ser pai', diz transexual

DANIEL CASTRO
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

O transexual João Nery deu entrevista à Folha em sua casa, no Rio. Ele só concordou em ser entrevistado se sua verdadeira identidade e endereço não fossem revelados. Usava camisa social, calça jeans e tênis. Está ficando careca por causa dos hormônios. Tem barba e braço peludo. Serviu cerveja ao repórter e comentou: "Você é fraco no copo, hein?" (Daniel Castro)
*
Folha – Quando você percebeu que era uma menina com cabeça de menino?
João Nery – Desde que me entendo por gente, eu me sinto menino. Aos 9 anos, minha mãe me levou a uma psicóloga porque eu jogava futebol e bola de gude. Acredito que aos três anos eu já queria ser menino.
Folha – Como foi sua adolescência?
Nery – Sempre fui confundido com um menino. Durante uma fase na adolescência, tentei ser mulher. A pressão social, as três irmãs, os pais queriam que eu fosse mulher. Quis experimentar.
Folha – Você chegou a ter um namorado. Teve relações com ele?
Nery – Nunca. A primeira vez que ele tirou a roupa eu o invejei de cima embaixo. Ele estava me seduzindo como eu gostaria de seduzir uma mulher.
Folha – Você se sentia atraído por mulher?
Nery - Era apaixonado pelas mulheres desde os seis anos de idade, mas só tive relações aos 19 anos. Eram paixões muito unilaterais. E só aos 22 anos saí de casa para morar com a mulher que eu gostava. Foi nessa fase que eu assumi as minhas características masculinas.
Folha – Como é que você chegou a fazer a cirurgia?
Nery - Chegou um ponto que resolvi fazer essa opção. Descobri uma equipe, que trabalhava no hospital (nome vetado pelo entrevistado).
Folha – Como as mulheres reagem quando sabem da sua transexualidade?
Nery – Primeiro eu conquisto como homem. Elas se envolvem, se entregam. Deixo para contar na última hora, quando a coisa vai se consumar. As mulheres estão tão envolvidas que não resistem. Mas é claro que é uma situação insólita. Uma vez eu contei para uma mulher e ela não acreditou. Pensou que eu era um homem que tinha resolvido virar mulher, mas antes de fazer a operação estava transando com ela, me despedindo (risos).
Folha – As mulheres que você namorou eram homossexuais?
Nery – Não. Nem todas.
Folha - Você conhece outros transexuais femininos?
Nery – Depois que publiquei o livro comecei a receber muitas cartas. Recebi uma vez em minha casa três transexuais femininos, já operados, com suas respectivas mulheres. Foi uma experiência incrível.
Folha - Você tem documentos masculinos?
Nery – Tenho, como todos acabam conseguindo, porque do contrário não dá para sair na rua. Se o guarda me pára na rua e eu dou documento de mulher, ele não vai acreditar que é meu.
Folha – Você tem um filho, não é mesmo?
Nery – Ele é um gato! Eu sempre quis ser pai. Sabia que não podia geneticamente, mas poderia ser psicológica e socialmente. Acho que estou desempenhando bem essa função. Quando ele nasceu eu estava desempregado e a minha mulher trabalhava. Assim que ela acabou de amamentá-lo eu cuidei dele. Fazia questão de ser um paizão-mãe. Minha mulher engravidou por inseminação artificial. Eu acompanhei a gravidez, fui ao médico com ela, fizemos o pré-natal. Eu assisti a cesariana e fui o primeiro a pegar o bebê quando ele nasceu. Ele tem todo o meu jeito e eu quero torná-lo um homem especial. Mas ele já está muito machinho para o meu gosto.
Folha – Seu filho sabe da sua condição?
Nery – Não. Ele não toma banho comigo, mas dou banho nele. Faço essa linha pai-conservador não por pudor. É para preservá-lo. Ele é muito criança para entender.
Folha – Você pretende contar tudo para ele?
Nery – Claro. Um dia.
Folha – Você não tem medo da reação?
Nery – Não, de certa forma já preparo ele para essa ocasião. Eu não permito que ele discrimine homossexuais. Eu o preparo para ter uma cabeça aberta, para que possa aceitar as pessoas como elas são, respeitá-las, amá-las. Acho que vai levar um susto, mas o amor dele por mim não vai mudar.
Folha – Por que você se casou no papel?
Nery - Porque eu queria chegar ao limite. Quanto mais eu fosse legalizado nessa cultura, mais incriminado estaria. Eu queria viver certas emoções que um homem comum vive, como o casamento.
Folha – Você usa camisinha?
Nery – Eventualmente. Sou um homem fiel. Já fiz parte de um grupo de homens para discutir sexualidade masculina.
Folha - Você concorda com a teoria da inveja do pênis?
Nery - Não. Freud pisou na bola em muitas coisas e uma delas foi nessa questão. Essa teoria é machista. O verdadeiro poder está nas mulheres, no feminino, na bondade, na humildade.
Folha – Então você nunca deixou de ser mulher?
Nery – Nesse sentido nunca deixei de ser mulher e, por outro lado, nunca consegui ser mulher.

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