São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Mulher implanta pênis e agora é pai

DANIEL CASTRO; RICARDO BONALUME NETO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

RICARDO BONALUME NETO
O empresário João Nery, 43, nasceu Joana. Quando criança, gostava de brincadeiras de meninos. Cresceu e não aceitou seu corpo, os seios, a menstruação.
Aos 22 anos, assumiu "seu lado masculino". A grande mudança veio aos 27, com um implante de pênis. Graças à cirurgia e aos hormônios, tornou-se um homem, com barba e voz grossa.
Nery (pseudônimo) ainda não estava satisfeito. Queria conhecer as sensações de ser "um homem comum", mesmo que isso o lançasse aos limites da marginalidade. Foi morar em um sítio e tirou documentos falsos com nome de homem. Casou-se três vezes, a penúltima delas no cartório.
Há seis anos, sua mulher deu à luz a um filho, concebido por inseminação artificial com esperma colhido em um banco de sêmen. Na certidão de nascimento do menino, o nome adotado por Nery preenche o espaço de "pai".
A faloplastia (implantação de pênis) de Nery foi feita clandestinamente no Rio, em 1977. Ele diz que não foi o primeiro transexual feminino brasileiro a ser operado pela equipe. Depois de uma série de testes fisiológicos e psicológicos, se submeteu a uma bateria de sete cirurgias.
Primeiro, extraiu os seios, o útero e os ovários. Depois, começou a construção do pênis, a partir de tecido do abdômen, enxertos e silicone. O membro é "precário" e está sempre semi-ereto. Não há ejaculação.
A cirurgia que transforma uma mulher em homem ainda é considerada "experimental", diz um dos mais famosos especialistas nesse tipo de operações, o médico americano Stanley Biber. Transformar um homem em mulher é bem mais fácil, como indicam os números da clínica de Biber em Trinidad, Colorado, a que mais fez esse tipo de operaçoes nos EUA.
Foram cerca de 3.000 homens que retiraram o pênis, cresceram os seios e tiveram aberta uma vagina, para menos de 250 mulheres que receberam um pênis artificial. "Eu posso fazer uma vagina capaz de enganar um ginecologista. Posso fazer um pênis que parece com um pênis, mas não que funcione como um", disse o médico em entrevista por telefone à Folha.
João foi motorista de táxi e já pintou paredes. Como Joana, chegou a se formar em psicologia e lecionou em três faculdades do Rio. Depois da cirurgia, teve que abandonar tudo, inclusive a pós-graduação, e cursar supletivo, para obter novos diplomas com o nome falso.
Nos dois anos em que se recuperou da operação, João escreveu uma autobiografia. O livro foi publicado em 1985 pela editora Record e se chama "Erro de Pessoa. Joana ou João?". Está esgotado. No livro, mesmo antes da cirurgia, refere-se a si sempre no masculino.
Hoje, João sobrevive com a renda de uma confecção. Mora no Estado do Rio e está namorando uma mulher da mesma idade, mãe de dois filhos adolescentes -- há dois anos se separou da mãe de seu filho. Ele tem prazer com as mulheres, mesmo sem ejacular. Na cirurgia, extraiu a vulva, mas deixou a vagina. A operação é proibida no Brasil, país que a considera mutilação do corpo. O cirurgião pode ser preso.
No livro, usa o nome de Joana para descrever sua infância e João, para a fase pós-operação. Os dois são pseudônimos. Ele não se deixa fotografar, nem de costas. Tem medo da Justiça. E, principalmente, que seu filho descubra que "papai" nasceu mulher.

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