São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Os custos sociais do liberalismo suicida

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Finalmente, políticos e intelectuais dos países centrais começam a se dar conta da gravidade dos problemas sociais e econômicos gerados por mais de uma década de um liberalismo irresponsável, dogmático e anárquico.
Esta tardia tomada de consciência se manifesta no encontro de cúpula dos ministros do Trabalho dos países centrais em Detroit (o Job Summit) e em recentes declarações de renomados e respeitáveis economistas conservadores. Pela primeira vez, o G-7 se reúne para discutir o problema do desemprego em massa nos países desenvolvidos, que não pára de crescer, lançando uma parcela cada vez maior da população na marginalidade.
Intimamente ligada a este processo está a questão da deslocalização, onde setores e até comunidades inteiras são destruídas, pois suas indústrias deixaram de ser competitivas num ambiente de globalização financeira e abertura comercial indiscriminada.
A combinação de taxas de desemprego crescente com a decadência econômica de regiões onde ocorre a deslocalização gera um quadro social terrível, cujas consequências são bem conhecidas.
Não falam, é claro, os liberais como os da revista "The Economist", que ainda no número da semana passada repetem a ladainha de que o problema do desemprego é resultado da rigidez do mercado de trabalho dos países desenvolvidos, em particular os europeus. A solução, como sempre, seria aumentar a "flexibilidade" do mercado de trabalho, com a retirada do seguro-desemprego e demais empecilhos ao livre jogo das forças de mercado.
Em outras palavras, o problema do desemprego viria do fato de que as economias centrais, no que diz respeito ao mercado de trabalho, são liberais de menos e a solução seria mais liberalismo.
Depois de anos de crescente "flexibilização" do mercado de trabalho, acompanhado de grande aumento e não de diminuição do desemprego, é natural que os governos e até alguns liberais de renome comecem a desconfiar que a solução para os males sociais causados pelo liberalismo irresponsável não seja mais liberalismo.
Em um artigo recente, o professor Maurice Allais, que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1988 por suas contribuições à teoria neoclássica (teoria de onde a fé liberal busca obter credibilidade "científica"), faz um ataque frontal à aplicação, nas condições contemporâneas, da doutrina das vantagens comparativas.
Segundo ele, esta "só é aplicável sob condicões altamente restritivas, particularmente se as taxas de câmbio correspondem ao equilíbrio das balanças comerciais e se as vantagens comparativas são permanentes, o que em geral não é o caso". Allais, talvez por vício profissional, ou sentimento de impotência ante a realidade, se esqueceu de mencionar a necessidade da hipótese de pleno emprego.
Na maioria dos casos, o resultado da política liberal foi uma enorme destruição de empregos locais, em troca de uma pequena redução no preço do produto para o consumidor e um grande custo fiscal para a sociedade toda, sobretudo para os próprios consumidores que mativeram-se empregados.
Os custos sociais estão hoje em evidência em toda parte. Um relatório recente da OIT prevê para o final da década taxas de desemprego em torno de 30% para os países desenvolvidos. Esta situação e a falta de perspectiva para os mais jovens cria um caldo de cultura propício à marginalidade e aos movimentos de extrema direita, visíveis em toda a Europa.
Frente a esta situação de catástrofe social, o ex-liberal Maurice Allais recomenda o fechamento comercial do mercado comum europeu, através do controle quantitativo de importações dos países extra-comunitários. No caso de a CEE não adotar francamente uma política de bloco, frontalmente contrária às regras do Gatt, recomenda que a França o faça sozinha. Na verdade, apesar da retórica liberal, é esta a prática corrente nos Estados Unidos e no Japão em matéria de comércio de mercadorias que ameaçam suas indústrias.
Independentemente do caráter conservador ou utópico e da viabilidade técnica ou política de quaisquer destas propostas, é um consolo saber que as pessoas estão reaprendendo que a solução para o problema do desemprego, resultante da modernização conservadora e dos excessos do liberalismo, não pode ser simplesmente mais liberalismo.
Enquanto isso, chega ao Brasil lady Margaret Thatcher, símbolo do que há de pior no liberalismo socialmente irresponsável e é aplaudida de pé pela nata do empresariado brasileiro.
As classes produtoras brasileiras não tomam juízo. Pagam US$ 100 mil para ouvir um show requentado da pseudo-rainha de um ex-império, cuja indústria entrou em decadência há 100 anos. Enquanto isto, sabotam, em nome do "livre mercado", mais um plano de estabilização, apesar de supostamente apoiarem o ministro como candidato.
Melhor fossem em caravana a Washington (e não a Nova York) verificar "in locu" as duas caras do consenso na capital do império. Na verdade, o que deviam escutar e estudar são os planos de reestruturação da indústria e a reforma do sistema de saúde, privado e público, que o governo dos Estados Unidos está aplicando para melhorar a situação interna do seu país.
Não deveriam impressionar-se tanto com as receitas e pressões do FMI e do secretário do Tesouro norte-americano sobre o Brasil e muito menos deslumbrar-se com a performance de uma atriz coadjuvante. Se prestassem atenção ao que está ocorrendo com as mudanças na economia norte-americana, ficariam surpresos, por exemplo, com o grau de estatização do novo programa de telecomunicações.
Talvez aprendessem também que o aumento de produtividade sistêmica é incompatível com o sucateamento do Estado e não implica, do lado empresarial, simplesmente aumentar o desemprego e subir os preços.
Finalmente, concluiriam que o governo americano não está baixando os impostos nem desregulando sua economia, mas regulando-a mais intensamente do que nunca, para enfrentar a concorrência dos países asiáticos e do Japão.
Ao mesmo tempo, o "Consenso de Washington" pretende obter da América Latina um déficit comercial, através de uma sobrevalorização da nossa moeda, o que permitiria aos Estados Unidos reequilibrar a curto prazo suas contas externas.
Isto significa que o Brasil, o último país a resistir ao novo ajuste, que é o oposto do de 1982/83, deve submeter-se à dolarização e promover a toque de caixa e no segredo dos gabinetes a reforma constitucional, no capítulo da ordem econômica, numa direção supostamente liberal, o que sustentaria novo ciclo de endividamento.
Mas seria pedir demais às classes produtoras brasileiras, interessadas apenas no botim imediato, que tomassem consciência do seu destino e do destino da nação. Provincianos e deslumbrados pela mídia, parecem não saber o que acontece no mundo e são incapazes de pensamento estratégico.
Continuam viciados numa ideologia liberal suicida, preocupados apenas com os seus desejos incontidos de ganância especulativa e patrimonial, que vão custar ao governo, este ano, mais de US$ 10 bilhões em juros internos. Somando os juros da dívida externa (cuja negociação ainda não terminou), o próprio FMI estima em 5,7% do PIB (mais de US$ 22 bilhões) a conta global de juros, uma cifra inacreditável, cuidadosamente oculta pela equipe econômica, e superior ao impacto fiscal ocorrido no auge da crise da dívida externa!
É por isso que o "ajuste fiscal" nunca termina e que o processo de privatização é uma farsa sinistra.
Na verdade, como disse recentemente Clovis Rossi nesta Folha, estamos precisando mesmo é de uma "ruptura democrática" que exponha o nosso empresariado aos ventos da negociação e da verdadeira produtividade e que termine de vez com o seu caráter de parasitas financeiros.
O saneamento do Estado e o cuidado com o povo, seguramente não cabem a eles e sim ao avanço da consciência e do desejo de cidadania do próprio povo, particularmente na escolha de seus representantes no Congresso e dos futuros governos da nação.

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