São Paulo, domingo, 20 de março de 1994 |
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Os méritos e limites do thatcherismo
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
É mais fácil atacar ou louvar o símbolo em que se transformou a "Dama de Ferro" do que analisar o fenômeno de um ponto de vista objetivo. A relativa proximidade dos eventos, seu estilo singular de liderança e o caráter radical e pioneiro das principais propostas de seu governo dificultam uma percepção mais realista e desapaixonada do que se convencionou chamar "thatcherismo". Ao assumir a liderança do Partido Conservador, em 1975, e nos quase 12 anos de vigorosa atuação nos cenários britânico e mundial como primeira-ministra, Thatcher trouxe a firmeza ideológica, o sentido de missão e a disposição ao confronto –"conviction politics"– para o centro da política. Como ela disse ao encerrar sua palestra em São Paulo: "Para mim não existe consenso, o que existe é acordo e consentimento. O consenso é a negação da liderança". A força da mensagem de Thatcher aparece com clareza no simples fato de que nenhum outro primeiro-ministro britânico, em mais de 200 anos de vida parlamentar, teve o seu nome convertido em "ismo". Diversos analistas, entre os quais o filósofo político da Universidade de Oxford, Leszek Kolakowski, interpretam isso como sugerindo a existência de uma percepção difundida de que a política do governo Thatcher não expressou apenas as idéias e a vontade da primeira-ministra, mas é também um fenômeno de caráter mais permanente que sua passagem pelo poder. Mas o que significou o surgimento do thatcherismo como ideologia política e econômica? Quais são seus principais objetivos e propostas de ação? E quais foram os resultados práticos das reformas implementadas durante o governo Thatcher (1979-1990)? A ascensão do thatcherismo na Grã-Bretanha selou o término do "grande consenso keynesiano" sobre o papel do Estado no sistema econômico. Os três pilares desse consenso –todos convergindo no sentido de aumentar a presença e estender as fronteiras do poder estatal– eram os seguintes: 1º) a defesa da economia mista, com forte participação de empresas estatais na produção de bens e serviços e a crescente regulamentação das atividades do setor privado por meio de legislação específica; 2º) a montagem e ampliação do "Estado do Bem-Estar", baseado na transferência de renda para certos grupos da sociedade (idosos, crianças, deficientes e desempregados) e buscando promover algum tipo de justiça distributiva; 3º) uma política macroecômica ativa de manipulação da demanda agregada através de estímulos fiscais e monetários e voltada acima de tudo para a manutenção do pleno emprego no curto prazo. O thatcherismo desafiou de forma frontal e abrangente este consenso, identificando propostas e políticas alternativas para cada uma destas três grandes áreas de atuação do Estado. O importante é frisar que os argumentos e o debate em torno de cada uma destas frentes corre por canais inteiramente distintos. A incapacidade de separá-los corretamente tem sido uma das maiores fontes de confusão e mal-entendido nas controvérsias sobre o papel do Estado. Ao contrário do que muitos acreditam, em nenhum momento Thatcher defendeu um Estado fraco ou o desmantelamento do "Estado do Bem-Estar": "Não acredito em governo fraco, e sim em governo forte, mas circunscrito. O governo deve ser forte para respaldar o Estado de Direito, forte para lutar contra cartéis e monopólios, forte para manter sólidas as finanças do Estado, forte para estabelecer um padrão mínimo de benefícios sociais que possam garantir uma vida decente e, finalmente, forte para defender a nação". Sobre o problema do menor carente, em particular, ela afirma: "Sei que no Brasil existe um grave problema: o das crianças abandonadas por seus pais e que jamais tiveram o carinho e a orientação que os senhores e eu consideramos normais... Quero deixar bem claro que cuidar das crianças não é apenas uma questão de trabalho voluntário. Com certeza é dever do Estado proteger essas crianças de pais e adultos mal-intencionados". Quanto aos objetivos e resultados da era Thatcher, parece claro, a esta altura, que ela teve mais sucesso na "guerra das idéias", isto é, na transformação do clima de opinião, do que na tarefa de criar uma verdadeira "enterprise culture" e promover o renascimento econômico do Reino Unido. O desempenho da economia britânica melhorou bastante, mas ficou aquém da expectativa criada. O melhor índice da vitória do thatcherismo e de sua aceitação pelo eleitorado britânico está na mudança de orientação do partido Trabalhista. No início, houve a polarização. Com o tempo, contudo, o que ocorreu foi o deslocamento de todo o espectro ideológico em direção ao pólo thatcherista. Para sonhar novamente com o poder, os trabalhistas se vêem obrigados a ficar cada vez mais parecidos com os seus adversários, rivalizando com eles na defesa do liberalismo econômico. O problema é que o eleitorado ainda desconfia de suas promessas. Depois de Thatcher, existem mais acionistas na Grã-Bretanha do que trabalhadores sindicalizados. O mesmo país que no final dos anos 70 estava atolado em greves e conflitos sindicais, em 1992 perdeu apenas 20 em cada 1.000 dias de trabalho devido a greves –a menor taxa desde o início deste tipo de estatística, em 1891. As contradições do sistema nunca estiveram tão acirradas, deve ser o "suspiro final" do capitalismo... Mas, por maior que tenha sido seu impacto nas ilhas britânicas, o principal legado de Thatcher foi no cenário internacional. Além de sua ascendência direta sobre a Perestroika de Gorbachev e a ascensão de Reagan, ela contribuiu decisivamente para a derrubada da ditadura na Argentina e para a derrota militar de Saddam Hussein. É duvidoso que algum outro estadista do pós-guerra tenha exercido uma liderança tão marcante na política mundial quanto a ex-primeira ministra britânica. Texto Anterior: Plano e pressa Próximo Texto: Um acordo esperto Índice |
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