São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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O vírus que reinventou o drama

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1988, quando o Museu de História Natural de Nova York inaugurou uma das primeiras exposições de arte sobre Aids, sob o título "Em Tempo de Praga", o tom era de otimismo. O curador Daniel Fox dizia que a Aids estava sendo representada com mais otimismo que outras pragas do passado, como a peste negra que dizimou 25 milhões de europeus no século 14 e ajudou a inventar um pintor como Bosch (1450-1516). Fox ilustrava seu otimismo: fotos de aidéticos mostram sempre alguém ao fundo fazendo-lhes companhia.
Um dos pintores da mostra, o norte-americano Ross Bleckner, explicava que os pontos de luz no céu estrelado de sua tela "Twelve Nights" representavam "as marcas do sarcoma de Kaposi nas peles das vítimas, mas eles estão flutuando, dando a idéia de que estão desaparecendo".
Santa ingenuidade. Como se sabe, a Aids não desapareceu. Mas o otimismo deslocou-se da crença na cura para a crença na redenção através da arte. Qualquer obra de arte sobre Aids vira totem. Critérios estéticos, sejam eles quais forem, são substituídos por critérios da propaganda: basta falar de Aids.
O crítico norte-americano Robert Hughes foi um dos primeiros a notar esse movimento idiotizante: "O fato de uma obra de arte ser sobre a Aids ou o fanatismo não lhe empresta mais mérito do que se fosse sobre sereias e palmeiras", escreveu no ensaio "A Cultura da Reclamação".
Hughes está dizendo o óbvio, mas não é isso que prevalece em exposições como as bienais de Veneza e do Whitney Museum de Nova York. Vale aí a praga do "politicamente correto". Não importa que a Aids apareça numa metáfora tosca, como a que o grupo Subreal apresentou na Bienal de Veneza do ano passado. A instalação chama-se "Draculand". O grupo é de Budapeste, Hungria, suposta terra de Drácula. Mostra uma dúzia de paus –como os que Drácula teria empalado suas vítimas– apontados para fotos de nádegas masculinas.
Zero à esquerda maior, se é que a matemática aceita, só mesmo a instalação "Pest Control" (1993), de Carsten Hõller. É um jipe Land Rover, igual àqueles que os ingleses usavam para combater epidemias na África, estacionado ao lado de um manequim com ares de prostituta. Na porta do jipe está escrito "Pest Control". Também foi ungida pela Bienal de Veneza.
Acaba aí, na metáfora anêmica, a má notícia. A boa é que a Aids ajudou a arte a recuperar algo que não se via desde o romantismo no século passado –o drama.
Foi a arte moderna, com sua fé na racionalidade, que baniu o drama e transformou o banimento em cânone. Picasso só se curva ao drama quando a morte invade sua história, caso de "Guernica", o painel que evoca os horrores do nazismo. E Picasso é uma exceção, como o pintor Francis Bacon e o expressionismo alemão.
O drama começou a voltar à arte com a morte de artistas portadores do vírus da Aids. A obra do fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe (1946-1989) não pode ser vista mais como um retrato dos inferninhos gays depois que se sabe que ele morreu com Aids. O vírus transformou suas fotos em prenúncio trágico.
A Aids fez com que os artistas contemporâneos passassem a tratar da morte sem as luvas cirúrgicas da arte conceitual. Três brasileiros conseguiram escapar da armadilha da propaganda e chegar ao drama: Jorge Guinle Filho (1947-1987), Leonilson (1957-1993) e Iberê Camargo. Os dois primeiros morreram com Aids. Iberê tem câncer no pulmão e criou a série "O Homem com a Flor na Boca" para ajudar um amigo, portador do HIV.
Na última exposição de Leonilson, no ano passado, havia um trabalho pintado com sangue do próprio artista. Sem querer, ele aproximava sua obra do terceiro movimento no embate arte-Aids. Já não é propaganda nem só depoimento sobre o drama; é quando o sangue vira matéria da arte.
O inglês Marc Quinn mostrou em 1993 em Londres a mais contundente obra desse novo romantismo, que volta ao corpo e ao sangue não como mero suporte, mas como um território em perigo. "Self" é uma máscara de Quinn feita com cinco litros de sangue do próprio artista –o sangue vira escultura ao ser congelado dentro de uma redoma de vidro.
Em Nova York, Tim Rollins vai literalmente ao território conflagrado. Criou em South Bronx, um bairro infestado de gangues, crack e Aids, um grupo de artistas jovens chamado KOS (Kids of Survival). Seria mais um exercício de expiação da culpa de um americano branco de classe média, não fosse o trabalho: eles pintam com sangue de animal páginas de clássicos como "A Tentação de Santo Antônio", de Flaubert, e "Pinóquio", de Carlo Collodi.

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