São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jones milita contra segregação

"Still Here" simboliza o embate de Jones contra o tempo

ANA FRANCISCA PONZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vítimas da Aids, a dança já perdeu Rudolf Nureyev, Jorge Donn, Dominique Bagouet, Paolo Bortoluzzi. Agora, ela tem no bailarino e coreógrafo americano Bill T. Jones o mais contundente militante contra a segregação.
Bill T. Jones está com a saúde artística cada vez melhor à medida que o tempo sela sentença sobre suas condições físicas. Soropositivo e homossexual (condição que poderia ser considerada tão ocasional quanto o fato dele ser negro), Jones não demonstra vigor somente quando está no palco (além de compor obras-primas, ele ainda dança com plena energia).
Jones também é poderoso quando faz uso da palavra –não exatamente em cena. Um exemplo: em novembro do ano passado, durante uma conferência que realizou na Universidade de Letras, Artes e Ciências Humanas de Nice (França), Jones causou comoção numa platéia formada por estudantes, jornalistas e intelectuais. Falando abertamente de sua condição, com voz grave e idéias brilhantemente articuladas, Jones lembra líderes políticos como Martin Luther King (aliás, um de seus ídolos).
Na dança, cuja comunidade leva fama de introspectiva e arredia às manifestações políticas, Jones surge como o mais corajoso porta-voz. Após Nice –que incluiu um veemente protesto (em território francês, vale notar) contra as discriminações movidas nos EUA pelos politicamente corretos–, ele ampliou seu rol de admiradores. E a Europa parece disposta a adotá-lo: Jones acaba de aceitar o cargo de coreógrafo-residente do Lyon Opera Ballet, em substituição à francesa Maguy Marin.
"Os americanos se assustam ao pensar que seu dinheiro pode pagar uma exposição de fotos de Robert Mapplethorpe", diz Jones, que se inspirou em imagens do polêmico fotógrafo para criar um de seus últimos balés, "After Black Room". "Ao mesmo tempo", prossegue Jones, "tudo é motivo de campanhas publicitárias. Racismo, apartheid, Aids, tudo é merchandise. Me pergunto o que dizer de maneira a estimular as pessoas à ação". Para expressar suas inquietações, Jones toma caminho inverso ao minimalismo que marca boa parcela da dança americana contemporânea. Para Jones, a arte minimal sobrepõe forma ao conteúdo, distanciando-se da emoção.
Muito pouco para ele, que afirma ter cicatrizes dolorosas na memória. Décimo filho de uma família de 12 irmãos, Jones perdeu o amante e parceiro artístico Arnie Zane, branco e judeu, em 1988, morto pela Aids. Hoje, seu mais arrojado projeto é o espetáculo "Still Here", que deve estrear em setembro, na Bienal de Dança de Lyon. Para realizar esta coreografia de várias horas de duração, ele vem fazendo o que chama de "workshops de sobrevivência" –ou seja, encontros com doentes terminais, não só aidéticos. Gravações e filmes colhidos nessa espécie de documentário serão usados em "Still Here", cujo título simboliza o embate de Jones contra o tempo.
No entanto, "Still Here" não deve ser uma ode à depressão. Verdadeiros poemas coreográficos, os espetáculos de Bill T. Jones podem falar de tristeza e fragilidade, mas nunca deixam de ser uma celebração de vida. Elementos como sensualidade, romantismo e mesmo bom humor, trabalhados dentro de uma riqueza de movimentos incomum, fazem de Jones um dos maiores criadores da dança contemporânea. É um autor que já consolidou uma obra que, acima de tudo, transmite um inapelável sentido de urgência.

Texto Anterior: O vírus que reinventou o drama
Próximo Texto: Imagens contaminam o mundo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.