São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Imagens contaminam o mundo

NELSON BRISSAC PEIXOTO; LUCAS BAMBOZZI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mundo se intoxica do eletrônico. Se a vida contemporânea apoia-se progressivamente nas imagens-vídeo e seus circuitos, a relação é recíproca: as imagens eletrônicas se impregnam das cenas de um mundo "pós-orgia".
O vídeo se confirma como sendo essa coisa estranha e sem forma definida que, se está em todo lugar, entre todas as coisas, não tem lugar, não é coisa-em-si, não se sabe direito o que é. Traçando uma analogia com os sistemas viróticos, como vem sendo analisado pelo pensador francês Jean Baudrillard: ele é o próprio organismo que absorve os vários tipos de infecções, na forma de influências, analogias, citações e dependências diversas.
Há mesmo uma espécie de contágio recíproco entre as imagens de nosso tempo. As imagens do vídeo vêm adquirindo estatuto de catalisadores dessa infecção generalizada, algo que, por mera aproximação, degenera os valores das imagens clássicas e tradicionais. O vídeo é contaminado pelo cinema, que juntos influenciam a televisão, que por usa vez contamina o mundo com suas imagens pobres, duvidosas e sem alma. Sua estética se confunde com a própria virose.
O vídeo situa-se nesse campo da promiscuidade que comporta extremos de várias naturezas: o estranho, o múltiplo, o simultâneo, o obsceno, o frenético, mas também o lírico, o silêncio, o vagaroso, e outras formas inesperadas de percepção do poético.
O vídeo modifica a noção das imagens avulsas. Existe uma prioridade em estabelecer sentido entre elas. As imagens são do mundo, estão em toda parte e são captáveis por golpes de vista. A perda de limites no uso de imagens avulsas e alheias explicita outro aspecto da relação infecciosa: a fabricação dá lugar ao uso –nos copiamos à medida em que nos contagiamos um do outro.
Até o aspecto paradoxalmente matérico da imagem-vídeo, dotada de uma espessura ótica, sugere contato físico. No vídeo, onde a perda de profundidade revela a superfície, as imagens são adentráveis, tateáveis: promíscuas? A imagem de um casal copulando, em "Numéro Deux", de Godard, funde-se organicamente com o rosto da menima que o vê, evidenciando o caráter físico da integração das imagens. Não poderia haver maior emblema da contaminação das imagens atuais do que esta cena de coito anal. O rosto é composto pelos corpos modulados por computador, de modo que a segunda imagem parece literalmente uma emanação da primeira.
Esta interpenetração das imagens, dotando-as de maior espessura, próxima da pintura, seria uma nova forma de montagem ficcional? O vídeo então faria aparecer aquilo que não se pode filmar, a imagem entre os corpos.
O vídeo permite o trânsito entre os diferentes suportes e linguagens que caracteriza a cultura contemporânea. Todos estes movimentos têm seu espaço na imagem eletrônica. Ela assimila todas as outras imagens, permite a conexão entre os suportes, a transição entre pintura, fotografia e cinema.
Na medida em que é um medium capaz de integrar e transformar todos os outros, o vídeo é o lugar por excelência de passagem: tudo passa na televisão. Para onde vai o vídeo? Para todo lado. Ele é que permite passar de uma imagem a outra. O vídeo está entre todas as coisas, é o grande agenciador da dinâmica cultural. O tráfico é que assegura a saúde das imagens.

NELSON BRISSAC PEIXOTO é ensaísta e professor da PUC-SP

LUCAS BAMBOZZI é videomaker e coordenador de vídeo do MIS (Museu da Imagem e do Som)

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