São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Escritor defende Matisse dos ingênuos

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Marcelin Pleynet, 60, é um dos convidados estrangeiros do ciclo "Artepensamento". Escritor francês, professor titular de Estética na École des Beaux Arts de Paris, virá falar sobre arte e pensamento na obra de Henri Matisse (1869- 1954). Sua cruzada intelectual é contra os formalistas americanos que não vêem na arte de Matisse a existência de um pensamento profundo, corajoso e esteticamente realizado. Na entrevista a seguir, feita por telefone de sua casa na capital francesa, Pleynet explica por que ainda mal se começou a estudar a arte de Matisse.
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Folha - Como é o pensamento de Matisse em relação às filosofias e ideologias do século 20?
Pleynet - Acredito que seu pensamento, dentro da cultura do século 20, se opõe explicitamente e deliberadamente ao niilismo do século 20. Mesmo durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a arte de Matisse mostra um pensamento positivo sobre o homem, não dá conta nenhuma do pensamento negativo que habita o século 20.
Folha - E como se explica que a arte de Matisse, com conceitos de alegria e tranquilidade, não nos pareça ingênua?
Pleynet - Porque não é de modo algum ingênua. Ela testemunha um pensamento sobre o homem e a história que é absolutamente singular. Não podemos ser historicistas quando estudamos a obra de Matisse. Seu pensamento, expresso em quadros como "Alegria de Viver" e "Luxo, Calma e Voluptuosidade", que faz referência a um poema de Baudelaire, se refere ao pensamento do século 18. A arte de Matisse dialoga com a arte do século 18, e a partir dela discute o niilismo do século 20. Por isso não é ingênua. Matisse pensava por conta própria, como todo gênio.
Folha - Essa busca de uma tranquilidade e sensualidade por parte de Matisse, o sr. não acha que é uma influência também da arte oriental?
Pleynet - De modo algum. É um pensamento bastante francês e bastante setecentista. O que ele busca não é puramente a alegria, a sensualidade, mas uma inteligência da alegria e da sensualidade. Uma felicidade dentro do homem, não fora. E não existe a palavra "tranquilidade" na obra de Matisse; "calma" não significa necessariamente tranquilidade. Como disse um pensador, "não há sentido senão o do desejo". Isso a meu ver resume o pensamento de Matisse. Não há conceitos orientais em Matisse. Basta lembrar que ele termina sua carreira sob o prisma do catolicismo. Claro, há a descoberta dos arabescos, de uma arte médio-oriental, mas não há um pensamento oriental.
Folha - Como se pode analisar o pensamento de Matisse à luz da questão figura/fundo?
Pleynet - Para mim, o desenvolvimento da organização espacial em sua obra se define pelo que eu chamaria de "espaço aproximado". Matisse dizia que precisava ter uma grande proximidade com o modelo ou o motivo de seu quadro, que precisava saber todas as características de seu modelo. Dizia: "Para mim, o modelo é enganador; não importa o que eu precise fazer para chegar a esse jardim, onde estou sozinho e tão bem, eu vou fazer". Ou seja, a relação com o modelo, com a figura, é uma relação problemática; há um espaço entre o artista e o modelo. Esse espaço, dizia Matisse, tem de ser encurtado. E eu diria que, no final de sua vida, essa vontade de aproximação espacial se tornou cósmica. O que os formalistas americanos diziam, que a arte de Matisse é uma arte da superfície, da platitude –é o contrário! É uma arte essencialmente da profundidade. Mas de uma profundidade do sentido, não de uma profundidade fenomenológica, não de uma profundidade do pensamento. Desse ponto de vista, é significativa a última obra de Matisse, a capela de Vence, com a arquitetura, os vitrais, a decoração interna, a vestimenta do padre. Não há registro na história deste século de um artista que realizou uma obra cinética e religiosa tão complexa.
Folha - O crítico italiano Giulio Carlo Argan escreveu em "Arte Moderna" que Matisse, ao contrário de Picasso, fazia uma arte que buscava uma suspensão do juízo. O sr.concorda?
Pleynet - Acho que isso me parece um pouco sociológico demais para ser realmente interessante. É uma redução de Picasso a um crítico, e uma redução de Matisse a um hedonista. A verdade é que os dois tinham uma relação muito estreita. A diferença entre eles, a meu ver, é que um era guiado por uma personalidade que não é francesa, é espanhola, e o outro por uma personalidade francesa. Mas tanto num como noutro o pensamento da obra se dá por esse "espaço aproximado". Isto é, por uma meditação, por exemplo, sobre o que Manet fez ao mesmo tempo com a arte de Ticiano e a de Goya. Ou sobre o que dá a grandeza à "Olympia" de Manet. Um e outro partem de clichês da história da arte e colocam um acento extremamente forte sobre o que ela fez em termos de erotismo e alegria –em termos de proximidade com o objeto. A arte de Matisse como a de Picasso é em 80% consagrada ao feminino. Ambos partem da arte do século 18; Matisse, no fim da vida, declara que sua maior influência é um autor de pastéis chamado Quentin la Tour. Dito de outra maneira, são dois artistas que liquidam, através de sua arte, tudo que existe de niilismo no pensamento do século 20.
Folha - Mas a obra de Picasso não exibe uma maior hostilidade em relação ao mundo?
Pleynet - De modo algum. Veja as grandes características formais da obra de Picasso –por exemplo, suas invenções morfológicas. Para entendê-las basta pedir à pessoa que olha seu quadro para olhar para o vizinho ao lado e se verá a riqueza dos retratos que Picasso pintou. E mesmo no assunto sexual, o que importa não são os aspectos anedóticos de sua crítica. Por sinal, sua crítica, no fundo, é superficial; "Guernica" é antes o retrato de uma mulher da vida que um quadro histórico. Temos julgamentos muito sociológicos e superficiais sobre essas duas obras. Dizem que Picasso era mais agressivo, e no entanto foi um quadro de Matisse que queimaram numa rua em 1913 por ser "indecente".

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