São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Bavcar, o fotógrafo cego

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Artepensamento" tem um fecho de ouro. Traz pela primeira vez ao Brasil o esloveno radicado em Paris Evgen Bavcar (lê-se "d-u-gen-ba-u-char"). Bavcar, 47, parte de um duplo paradoxo para expandir os limites da arte contemporânea. Bavcar é um fotógafo cego, ou, como prefere, "um cego que fotografa". Bavcar é ainda um fino ensaísta de linhagem frankfurtiana, doutorado em estética pela Sorbonne e especialmente devotado às artes visuais –pintura, fotografia e cinema à frente.
Além de sua palestra "A Luz e o Cego", Bavcar trará uma exposição de 30 fotos recentes e um ciclo de filmes e vídeos feitos por ele ou sobre ele. Participa ainda de debates sobre sua obra (dia 6 no MIS-SP, dia 10 no Museu da República no Rio).
Na palestra, Bavcar vai resumir o percurso que o levou a se definir hoje como "artista conceitual". O autor de "Le Voyeur Absolut" (Seuil, 1991) vai partir da relação entre palavra e imagem na História da Arte, explorando uma curva que liga da Grécia antiga ao seu próprio "trabalho conceitual como fotógrafo". "Se hoje em dia se fala do predomínio da imagem sobre o verbo, esquece-se com frequência quanto, no plano das criações artísticas, se deve ao verbo", escreveu certa vez Bavcar.
"O verbo é cego", ensina Bavcar, e a arte é o que torna visível, poderia concluir, citando Paul Klee. A palestra prossegue com o fotógafo esloveno sustentando a origem da luz nas trevas. Chega-se a um imagem cara a Bavkar: o "carré noir" de Malevitch, que zera a herança realista das artes plásticas propondo um novo recomeço. O projeto estético de Bavcar vem daí: "o que proponho é a realização de uma imagem mental, o traço físico que corresponde o melhor possível ao trabalho do imaginário".
Há seis meses, numa entrevista telefônica, Bavcar revelava seu método: "sou uma câmera escura atrás de uma câmera escura. Meu ponto de partida não é a luz, mas sim a sombra. Gosto de fotografar a noite. Vejo o escuro como volume. Esculpo com a luz as imagens dos objetos que ocupam o volume. O tato é a base de minha fotografia". Não surpreende, assim, as séries de fotos de esculturas e de nus femininos, todas sombrias, com suas superfícies percorridas por precisos feixes de luz ou mesmo múltiplas mãos tateantes.
"É preciso voltar às trevas para achar as verdadeiras imagens. Há uma espécie de poluição visual", prossegue Bavcar. Preocupado com esta ecologia imagética, nada mais natural que ele se voltasse para um dos principais responsáveis pela banalização da imagem: o cinema. É esta a mais recente paixão de Bavcar. Há dois anos, ao lado de Roland Platte, Bavcar rodou "Les Poseuses", um curta-metragem ficcional largamente autobiográfico, que estará no pacote de junho. NO filme, um cego amante de pintura visita um museu parisiense ao lado de uma nova amiga. Para seu desconforto, ele pede-lhe que descreva minuciosamente um quadro: claro, é "Les Poseuses" de Seurat, um dos marcos do pós-impressionismo.
Além de didaticamente encenar um dos hábitos do Bavcar –crítico de artes, o curta ilumina a filiação estética do Bavcar-fotógrafo. Afinal, como escreveu Paulo Sérgio Duarte ("O Que Seurat Será?" in "O Olhar"), para Seurat, "o olhar é a própria pintura (....) Não se trata de captar a sensação visual de um fenômeno externo, compreendendo e comunicando os efeitos dos processos sensoriais implícitos na observação de uma cena, como fazíamos impressionistas, mas de produzir um fenômeno, fabricá-lo na superfície pictórica (...) Seurat constrói o quadro como uma máquina de dissecação do olhar, um instrumento analítico". Substituam-se "Seurat" por "Bavcar" e "pintura/quadro" por "foto" e teremos uma bela análise da obra do artista conceitual esloveno.
No mês passado, num encontro em seu apartamento parisiense, expus a Bavcar a leitura acima de "Les Poseuses". Depois de aprová-la, sorrindo, Bavcar acrescentou: "Mas há mais: quis brincar com uma inversão. Há um parentesco entre o pontilhismo de Seurat e o pontilhismo da escrita em braille; a diferença é que é preciso a distância física para entender um quadro de Seurat e a proximidade do tato para decifrar o braille (risos)." Além de originalidade e erudição, Bavcar é dotado de um sagrado senso de humor.

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