São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Flor usa cinto de castidade bioquímico

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Flores também têm suas preferências sexuais. "As flores têm de ter como decidir com quem transar, assim como os seres humanos", diz o pesquisador Bruce McClure. O primata mais numeroso do planeta Terra tem o tabu do incesto para evitar transar com um parente próximo. Flores têm estratégias sofisticadas. McClure e seus colegas desvendaram recentemente uma dessas estratégias florais para evitar o "incesto" –um "cinto de castidade bioquímico".
Eles mostraram que certas flores produzem uma substância –uma enzima, um tipo de proteína que catalisa reações químicas– capaz de reconhecer o próprio pólen e dar um jeito de destruí-lo antes que ele a fecunde (antes que ele a "deflore").
Ao contrário da esmagadora maioria dos seres humanos, flores têm órgão sexuais masculinos e femininos. Existe um aparelho sexual masculino, o androceu, e um feminino, o gineceu. Como é praxe na natureza e na definição dos biólogos, o lado masculino tem de penetrar o feminino.
Assim, o androceu é um conjunto de estruturas chamadas estames, que têm na ponta os grãos de pólen, uma espécie de "esperma" floral. Do lado de lá, o gineceu é formado pelos pistilos, onde o pólen vai germinar. O gineceu tem três partes, o ovário, o estilete e o estigma. Dependendo da espécie de planta, cada uma dessas estruturas têm o seu papel em resguardar a moral –e o patrimônio genético– da flor.
O processo pelo qual o pólen fecunda a flor chama-se polinização. Pássaros, abelhas e até alguns pequenos mamíferos, ou mesmo o vento ou a água, são agentes polinizadores, que levam o pólen de uma flor até outra. Algumas flores evitam essa complicação e usam o próprio pólen para se autofecundar. É uma estratégia arriscada, porém.
"É um toma-lá-dá-cá. Você troca uma progênie enorme por alguns poucos e bons", diz McClure, pesquisador do Departamento de Bioquímica da Universidade de Missouri em Columbia, sul dos EUA. As plantas que usam o próprio pólen agem como aqueles peixes que põem milhões de ovos, na chance de alguns poucos conseguirem sobreviver. Outras plantas preferem se concentrar em melhorar as características da prole, tendo alguns poucos "filhotes". São essas as plantas que usam o cinto de castidade bioquímico.
Qualidade total
O verbo "preferir", no caso, deve ser entendido não como uma opção consciente, mas como o resultado da evolução biológica darwiniana. Os seres vivos têm estratégias diferentes para sobreviver e deixar descendência. Para alguns, a melhor adaptação ao meio ambiente foi a produção em massa de clones.
Para os outros, que apostaram na "qualidade total", restou o problema do que fazer com o próprio pólen para evitar acidentes. Pelo menos três estratégias bioquímicas diferentes surgiram evolutivamente (veja ilustração ao lado). Uma delas foi decifrada agora por McClure e colegas e, simultaneamente, pela equipe de Teh-hui Kao, da Universidade Estadual da Pensilvânia, nordeste dos EUA. É o papel da enzima RNase no processo chamado de "auto-incompatibilidade", o método pelo qual o o pistilo (do aparelho feminino) identifica e rejeita o pólen da mesma flor.
Para chegar a essa conclusão, McClure e colegas tiveram primeiro que "aperfeiçoar" a natureza para poder fazer o experimento que pretendiam. O problema básico é que a melhor planta para as pesquisas não produz uma quantidade de RNase adequada. Trata-se de uma flor brasileira do mesmo gênero do tabaco (Nicotiana tabacum), a Nicotiana alata, comum no sul do país. Os cientistas produziram plantas transgênicas, ou "quimeras", juntando pedaços variados de material genético. Um, por exemplo, para roduzir RNase e outro (vindo do tomate) para amplificar essa produção. Com isso eles puderam fazer com que plantas naturalmente autocompatíveis, isto é, que se fecundam com o próprio pólen, rejeitassem pólen vindo da planta que cedeu o gene da RNase.
Essa enzima é produzida por células do estilete (aparelho feminino) e em casos de autofecundação termina sendo internalizada pelo saco (ou tubo) polínico, formado pelo grão de pólen sobre o estigma (também do aparelho feminino). Ao invés de a reprodução prosseguir, a RNase, fiel ao nome, degrada o RNA (tipo de material genético) no saco.
A ação da RNase é considerada pelos biólogos e bioquímicos como semelhante às de outras enzimas cuja função é proteger o pistilo de agentes patogênicos. A RNase age como cinto de castidade contra o masculino pólen; outras enzimas atuam na defesa contra parasitas –como fungos e bactérias causadoras de doenças.
Não é por acaso que algumas teorias –polêmicas e aceitas por uma minoria de pesquisadores– dizem que o elemento masculino é uma espécie de parasita, e que a reprodução sexuada teria surgido do parasitismo do "macho" primordial sobre a "fêmea". Essa teoria "feminista" faz sentido quando se pensa no custo energético do sexo, e na sua discutível vantagem –melhorar a progênie através da mistura de genes.

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