São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 1994
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Uma pequena consideração

JANIO DE FREITAS

Quando um ministro da área civil, dado até como primeiro-ministro de fato, é levado por vontade militar a inverter uma decisão que lhe competia e que anunciara apenas meia-dúzia de horas antes, a ordem constitucional sofreu um abalo. Foi o que aconteceu, considerando-se a primeira e sensata decisão do ministro Fernando Henrique anteontem, no sentido de pagar ao Judiciário o deliberado pelo Supremo Tribunal Federal, para depois discutir o problema, e a ordem que no fim do dia mandou ao Banco do Brasil, para deduzir 10,94% nos pagamentos àqueles funcionários.
A determinação do ministro ao BB deixou claro que foi "de ordem do Presidente da República". Neste caso preciso, pouco importa se a opinião do presidente foi também representada na ordem ao ministro, porque, ainda assim, não deixou de ser uma intermediação entre a recusa militar a admitir o pagamento integral e o posterior recuo de Fernando Henrique.
É curioso, em todo este episódio, que desde o início a exaltação militar e, a partir dela, a do presidente Itamar se tenham concentrado no STF. A decisão da Câmara, derrubando um veto presidencial ao projeto da isonomia, representava consequências muito mais graves para o plano antiinflação e foi adotada com inegável leviandade da maioria dos deputados. O fato de que o Senado logo evidenciasse a disposição de derrubar o ato da Câmara, eliminando sua consequências financeiras, não atenua a decisão dos deputados. A única interpretação possível para a discriminação é o propósito de proteger o Congresso para não tornar ainda mais gritante sua desqualificação moral para proceder a modificações na Constituição.
Neste mesmo Congresso é que ficaram depositadas, depois das reuniões de ontem no STF e das discussões no governo, as possibilidades de "solução" da crise. O governo emitiria nova medida provisória sobre conversão de salários e vencimentos em URVs, eliminando os defeitos da anterior que motivaram a conversão corretiva feita pelo STF. E o Congresso garantiria a aprovação da nova PM. As conversações entraram pela noite, não havendo concordância entre os responsáveis envolvidos sobre a fórmula para a nova MP. Qualquer que seja, porém, ou elimina as perdas dos funcionários que recebem antes do dia 30, ou será farsa que não deixará de ferir a Constituição, como faz a MP em vigor.
Recuo, o presidente do STF, Luis Galotti, não admite. Deixou clara esta posição no encontro com os representantes de órgãos do Judiciário. Recebeu o apoio do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal Superior de Justiça, que não admitiram o pagamento de seus funcionários com a dedução dos 10,94%. Ou seja, o Judiciário, para usar uma expressão do agrado dos militares, está coeso. E convicto de suas razões.
Os militares não parecem estar menos unidos, ao menos na exaltação. O mesmo não se dirá quanto à maneira de conduzir a crise. Ou não teria proliferado, em parte deles, a idéia de aproveitar a revisão constitucional e, estabelecendo-se aí que a permanência de ministros no STF seria de apenas oito anos, desde logo afastar os que já tenham atingido tal tempo.
Estes e os demais militares não deveriam esquecer, no entanto, que foram os primeiros a recusar o método de conversão adotado pela equipe econômica para o funcionalismo civil e militar. Por isso, logo tiveram o privilégio de 5% de abono acrescentados aos soldos, para compensar as perdas que suas contas preliminares indicavam. Esta lembrança lhes seria especialmente útil depois de se informarem melhor sobre os fundamentos que levaram à decisão do STF, quanto aos vencimentos do Judiciário. O regime constitucional merece esta pequena consideração.

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