São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 1994
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"E la Nave Và" é obra-prima crepuscular

FEDERICO MENGOZZI
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O glorioso Gloria N., o navio que leva as cinzas da soprano Edmea Tetua em "E la Nave Và", transporta entre seus ilustres passageiros o melhor da poética felliniana, esbanja seu talento plástico, expande seus dotes de narrador e, mais que tudo, desmente aquela visão aceita e estreita segundo a qual o cineasta italiano fazia sempre o mesmo filme –é como acusar Hitchcock de produzir apenas Hitchcocks. Quando Fellini já não tinha que provar mais nada, gerou uma obra-prima crepuscular, um filme novo e único numa carreira que terminou com o incompreendido e também inovador "A Voz da Lua".
Dez anos depois de "Amarcord", seu maior momento autobiográfico, Fellini voltou a solicitar a colaboração do roteirista Tonino Guerra, "romagnolo" como ele e parceiro habitual de Antonioni ("A Noite", "O Deserto Vermelho"). Dessa vez, não se preocuparam em recuperar antigas lembranças pessoais e, sim, antigas lembranças coletivas. É a velha ordem européia que está presente em "E la Nave Và", aquele arranjo de forças que explodiria na carnificina primária da Primeira Guerra e deixaria o terreno arado e adubado para a carnificina sofisticada da Segunda Guerra.
A guerra é o pano de fundo para uma fábula repleta de personagens e vazia de moral. Em julho de 1914, no porto de Nápoles, um grupo de homens e mulheres que conheceram, conspiraram e conviveram com Edmea Tetua sobem a bordo do Gloria N. e iniciam uma viagem que os conduzirá à ilha de Erino, onde nasceu a diva e onde suas cinzas serão dispersas ao vento. Um jornalista (Freddie Jones) cobre o cortejo fúnebre e une as histórias.
Como um grande hotel à deriva ou uma nau de insensatos, o navio conduz tipos que assumem o adjetivo felliniano, gente como a gente, ora com suas pequenas alegrias e profundas angústias, ora com suas profundas alegrias e pequenas angústias. À maneira de Georges Sadoul, o filme vai desenrolando episódios memoráveis, como as imagens iniciais no porto –começa como uma cena dos irmãos Lumière e vai ganhando ritmo, cor e som–, a passagem da cozinha para o salão de jantar, os passageiros que jantam –a bailarina alemã Pina Bausch, inesquecível como a irmã cega do grão-duque–, o concerto nos copos, a projeção de um filme com Edmea (Janet Suzman) e o torneio de egos e vozes nas caldeiras. Até que a tranquilidade, a velha ordem, é rompida pela presença de refugiados sérvios a bordo.
Os sérvios, vítimas e não algozes como hoje, alteram a história e impõem um andamento acelerado ao filme, que caminha para o grande final, dez minutos em que as imagens se fundem a trechos de óperas clássicas com letras pertinentes ao enredo e dão um definitivo adeus à verossimilhança. Os personagens se transformam também em narradores. O mar é de plástico. A fumaça de um couraçado inimigo é pintada. O Gloria N. é atingido e, enquanto se instala o caos, a câmara recua para mostrar que, em se tratando de Fellini, nem tudo é verdade. Em alguns segundos, o mágico desvenda a magia e mostra como Cinecittà cria a vida à sua imagem.
"E la Nave Và" –que a TV Bandeirantes exibe no próximo domingo– é cinema como se fazia antigamente, isto é, além da mera preocupação com o binômio pouco nexo-muito sexo. Seria, se a expressão não estivesse excessivamente gasta, um "hino de amor ao cinema" –mas é mesmo. É verdade que o vídeo vem em versão francesa –imagine se "Acossado" viesse falado em italiano–, mas, como diria Joe E. Brown, "ninguém é perfeito".

Vídeo: E la Nave Và
Direção: Federico Fellini
Elenco: Freddie Jones, Barbara Jefford, Victor Poletti e Pina Bausch
Lançamento: Paris Vídeo Filmes (tel. 011/864-3155)

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