São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 1994
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Forma e fundo se desencontram em 'Ética'

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Programa: Ética
Concepção: Adauto Novaes
Direção: Paulo Morelli e Dario Vizeu
Canal: TV Cultura, até sexta-feira. Hoje, o terceiro programa, às 23h

O primeiro programa da série "Ética", exibido terça-feira pela TV Cultura, foi antes de tudo uma demonstração do divórcio entre fundo e forma.
O fundo ficou basicamente por conta de José Américo Pessanha, filósofo morto no ano passado, que discorreu sobre a ética na Grécia antiga (detendo-se sobre o pensamento de Epicuro).
A idéia é retomar o ciclo de conferências promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, na gestão Marilena Chaui e, mais amplamente, demonstrar que é possível fazer da TV um instrumento de transmissão de conhecimentos para uma população sem acesso a esse tipo de idéias.
Nesse sentido, o canal é o certo. As séries estrangeiras que a Cultura tem importado a credenciam a esse papel de restabelecer certos elos culturais retalhados no Brasil contemporâneo.
A realização apresenta alguns problemas que não invalidam a idéia, mas tornam necessário repensá-la, compatibilizando essas duas figuras em princípio antagônicas, que são o pensamento e a televisão (em geral, intelectuais têm uma visão apocalíptica da TV, e vice-versa).
Em princípio, seria mais desejável abandonar o formato de conferência, substituindo-o pelo diálogo (o programa sobre Sartre exibido pela própria Cultura e certos filmes de Godard são boas pistas).
Mas não é fácil: na França, não existe esse abismo tão brasileiro entre a universidade e a rua, que leva a academia à esterilidade e a rua à submissão amorfa à palavra autorizada (tirando futebol e corrupção de políticos, são poucos os assuntos de troca de opiniões).
Se já estamos face a uma situação difícil –falar filosoficamente para um público amplo–, a edição de imagens dificulta bastante as coisas. A idéia da série é inaugurar uma espécie de anti-TV; a edição "cola" recursos eletrônicos a um discurso que é seu oposto perfeito.
Desde a idéia de isolar o protagonista em uma pequena janela até as imagens poluentes que o circundam, tudo tende à dispersão. Talvez a idéia seja tornar a filosofia deglutível por pessoas acostumadas aos fricotes televisivos. Dá para trás: o discurso não se simplifica, só acaba prejudicado por uma imagética meio para o yuppie que tende a reificar o pensamento filosófico, isolando-o da vida corrente.
É estranho que, logo no início do programa, Nelson Brissac Peixoto lembre que a ética das imagens passa pelo tempo, que permite sua cristalização. No primeiro capítulo de "Ética", ao contrário, a imagem conspira contra qualquer cristalização, introduzindo o tresloucado tempo dos videoclipes onde nada o justifica.
Mais fácil seria deixar Pessanha falar à vontade. Ao contrário da edição, sua palavra dispensa ornamentos e, sem ser banal, é clara. Sua idéia central –da ética como uma arte de bem viver– está longe de ser algo cujo interesse restringe-se às salas de aula.
Nesse sentido, e a julgar pela primeira amostra, os filósofos caminharam em direção à TV com mais entusiasmo do que a TV em direção aos filósofos. Esta parece recusar a idéia de que as coisas são o que são e afirmar de que, para chegar a ela, precisam passar por um processo de "domesticação". Aí não dá pé.

O colunista JOSÉ SIMÃO está em férias durante o mês de março

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