São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 1994
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De Itamar e de asnos

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Pela primeira vez desde que Collor o arrancou do anonimato, Itamar soou sensato. Aliviado, o país chegou a comemorar a descoberta da existência de alguma inteligência sob o topete cor de chumbo. Flagrados aumentando os próprios vencimentos em 10,94%, congressistas e magistrados estavam mais por baixo do que ventre de cobra. Foi então que, armado de apoio militar, o presidente fulminou: "Não pago".
Juiz de Fora pareceu o berço de um gênio. Com duas parcas palavras, Itamar, até à véspera um fraco, encurralou o Congresso e o Judiciário. Ouviram-se aplausos dos pampas gaúchos à mata amazônica. Os adversários não tardaram a mendigar um acordo. Foi então que, diante do triunfo iminente, Itamar teve sua recaída.
Diz a sabedoria anônima que "a diferença entre a genialidade e a estupidez é que a genialidade tem limites". O Itamar genial sobreviveu apenas cinco dias. Repito: sua genialidade durou as escassas 120 horas que separaram a sexta-feira em que disse "não" aos 10,94% da quarta-feira em que lhe propuseram o acordo que o faria vitorioso. O Itamar que recusou a negociação cavou o túmulo do presidente racional. O Itamar teimoso enterrou o Itamar gênio.
Ao prolongar inutilmente o conflito, dando de ombros para a proposta de rendição do inimigo, Itamar isolou-se. Pior: gastou toda sua munição militar. Brasília foi tomada de assalto por uma unanimidade voraz. Excetuando-se os áulicos de sempre, não há quem não enxergue a (falta de) estratégia do presidente como um atestado de burrice.
A Brasília dos últimos dias faz lembrar o fabulário de La Fontaine. Recorde-se a historinha dos dois asnos. Acomodou-se sobre o lombo de um deles uma pesada carga de sal. Ao outro, coube transportar levíssimas esponjas. Na travessia do rio, o sal do primeiro derreteu. As esponjas, encharcadas, pesaram mais, afogando o outro animal. Itamar, a exemplo do segundo asno, cruzou a semana passada como o falso esperto. Depois de saborear a leveza da popularidade fácil, viu pesar-lhe sobre os ombros o preço da irresponsabilidade.

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