São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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"Complexo de Caim" pode regular evolução da hiena

LAURENCE FRANK
DA "NEW SCIENTIST"

'Complexo de Caim' pode regular evolução da hiena
Cientista sugere que níveis de hormônios determinam comportamento assassino em recém-nascidos
As contrações ficam mais fortes e começa o parto. Uma hora depois, emergem os dois filhotes, olhos abertos, incisos e caninos totalmente desenvolvidos. A mãe exausta lambe as crias. Em minutos, um filhote pega o irmão gêmeo pelo ombro e o chacoalha. Os dois se atracam, cada um com a pele do outro entre as mandíbulas.
A hiena, Crocuta crocuta, é o único mamífero selvagem que parece produzir filhos geneticamente programados para atacar e, em vários casos, matar os irmãos.
Mesmo em cativeiro, a tendência a Caim é óbvia: hienas recém-nascidas tentam destruir objetos inanimados como toalhas enroladas que têm a forma dos irmãos.
Estudo hienas na Reserva Nacional Masai Mara (Quênia) há 15 anos. No começo, ficava surpreso com a quantidade de filhos únicos, pois hienas em cativeiro costumam ter gêmeos.
Não via motivo para os irmãos gêmeos morrerem. Anos depois a verdade apareceu: os filhotes matam uns aos outros e, pior ainda, as mortes ficam restritas a gêmeos do mesmo sexo.
Por que a evolução teria selecionado um traço genético aparentemente tão destrutivo? Que vantagem as hienas tiram do fratricídio?
Elas têm um sistema social tão complexo quanto o de muitos primatas. Os machos deixam o clã na puberdade, enquanto as fêmeas permanecem para formar o núcleo social. Todas as fêmeas são dominantes sobre os machos adultos.
Elas não são apenas mais agressivas que os machos, mas se parecem com eles: os clitóris volumosos têm o mesmo tamanho que o pênis do macho e sofrem ereção total. Os lábios da vagina são fundidos para formar um "pseudo-escroto". A fêmea copula e dá à luz pelo clitóris.
Com o psicólogo Steve Glickman, iniciei em 1984 pesquisas na Universidade da Califórnia em Berkeley. Queríamos ver se a anatomia e a agressão da fêmea são causadas por níveis elevados de hormônios masculinos.
Em 1990 tínhamos dados sobre o sexo de 33 pares de irmãos: 28 eram mistos; 5 eram formados apenas por machos. Motivos biológicos não influíam na proporção entre os sexos: as hienas produziam duplas mistas e de um único sexo nas quantidades esperadas.
Por que então a ausência de gêmeas? Por que os machos gêmeos eram tão raros?
A luta entre os filhotes era mais intensa no dia do nascimento e diminuía à medida que um deles passava a ser dominante nos primeiros dias de vida –em geral a fêmea quando os gêmeos eram mistos.
Isso não explicava o papel evolutivo do comportamento agressivo. Seria a fome a causa? Em outras espécies –não mamíferas– onde se pratica o fratricídio, quando há pouca comida, filhotes dominantes matam os mais fracos. Quando há muita comida, todos sobrevivem.
Mas os motivos para o fratricídio entre hienas não podem ser tão simples. Se a comida fosse o fator dominante, os filhotes dominantes deveriam matar os irmãos independentemente do sexo.
Um dos possíveis motivos, pelo menos entre as fêmeas, é a competição pelo status. A fêmea de status mais alto no clã é substituída por uma filha ao morrer.
O status elevado está relacionado a mais sucesso na reprodução. As irmãs gêmeas se matariam para evitar competição quando adultas.
Mas há uma falha nessa teoria. Embora haja competição quando adultas, as hienas se unem para competir com outras famílias.
As coalizões entre fêmeas que são parentes próximas parecem preservar características do clã.
Minhas observações parecem indicar que os machos com maior status monopolizam os acasalamentos, e as fêmeas de maior status produzem mais filhos únicos do sexo masculino. Já as fêmeas com menor status têm uma quantidade mais equilibrada de filhotes machos e fêmeas.
Para as fêmeas de mais status, filhotes machos únicos têm duas vantagens. Elas podem ser no futuro chefes de um clã maior, pois produzem mais filhos. E machos são mais fáceis de cuidar. Além disso, as fêmeas voltam a ter filhos mais rápido depois de parirem um macho.
Há evidências de que a mãe intervenha nas lutas entre filhotes para controlar a proporção entre os sexos de acordo com seu status. Em um clã que ficou com menos fêmeas amamentando que o esperado, as fêmeas de maior status começaram a ter mais filhas. Em três anos, houve um fato inédito: cinco pares de gêmeas sobreviveram. Por que a mudança? A causa mais provável é as fêmeas estarem tentando reconstruir o núcleo materno o mais rápido possível. Pelo menos naquele momento, filhas tinham mais valor que filhos.
Não estou sugerindo que as lutas no berço tenham evoluído originalmente para permitir que as mães controlem o sexo dos bebês.
É mais provável que o fratricídio, assim como a bizarra genitália das fêmeas, tenha se originado como efeito colateral dos hormônios masculinizantes.
Esses hormônios, por sua vez, podem ter evoluído nas fêmeas por torná-las mais agressivas quando adultas. Mas por que as fêmeas da hiena precisam ser tão agressivas?
A agressividade feminina pode ter se tornado importante quando a hiena evoluiu como um predador ativo, praticando a caça em comunidade. Embriões sujeitos a altos níveis de hormônios masculinos acabam desenvolvendo adultos mais agressivos, que protegem melhor seus filhotes.
Os mesmos hormônios geram recém-nascidos agressivos e provocam o fratricídio. Isso poderia ter originado a tendência das mães a explorar o fratricídio para ajustar as proporções entre os sexos.
Se o raciocínio estiver correto, as hienas estariam aproveitando uma forma extrema do comportamento infantil, que escapa totalmente de seu controle. É um exemplo de como a violência e a sutileza podem andar de mãos dadas na evolução.

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