São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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A obra divina passada a limpo

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 03/04/94

Por uma falha técnica, em alguns exemplares, faltou o crédito da foto publicada . O crédito é dos Museus do Vaticano.
"Foi como o que os índios americanos devem ter sentido quando Colombo chegou –como ver pela primeira vez os navios flutuantes, as bandeiras coloridas."
Foi essa a comparação feita pelo conservador-chefe do Vaticano, Gianluigi Colalucci, 63, para explicar o que sentiu enquanto comandava a restauração das pinturas de Michelângelo na Capela Sistina.
Terminada a restauração da parede onde está a pintura do "Juízo Final", a data para reabertura da capela está marcada: é na próxima sexta, dia 8.
Em mais de 13 anos de trabalho, a equipe de Colalucci retirou camadas de pó, cola e fumaça, dissolveu sais minerais e preencheu rachas e lascas para descobrir, sob o depósito dos tempos, novas cores e humores no mais famoso dos afrescos da história da arte.
O custo, cerca de US$ 4 milhões, foi todo bancado pela rede de TV japonesa Nippon.
"É um trabalho excelente", disse por telefone à Folha a especialista Maria Iosissescu, da casa de leilões Sotheby's, de Nova York. "Estive três vezes lá e o efeito final é de tirar o fôlego."
Nem todos, no entanto, pensam como Iosissescu. A restauração da Capela Sistina causou e ainda causa uma ruidosa controvérsia.
Os opositores dizem: a) que a ação do tempo sobre a obra a deixava mais bonita ou significativa do que está com as cores flamejantes de agora; ou b) que o Vaticano devia esperar mais alguns anos (20, estimaram) para que surgissem novas técnicas de restauração que fizessem o trabalho com menor risco.
O centro da polêmica está na lavagem realizada por Colalucci e equipe na pintura. Para os opositores, quando a superfície foi lavada com uma substância chamada AB- 57 (veja quadro ao lado) houve uma reação com os pigmentos das tintas de Michelângelo que teria eliminado nuances das sombras e das passagens de cor.
Colalucci utilizou uma combinação de cinco solventes para a limpeza: bicarbonato de sódio, bicarbonato de amônia, desogênio, água destilada e o AB-57, um gel de carboxilmetilcelulose.
Colalucci diz que o AB-57 foi escolhido justamente porque remove sujeiras sem prejudicar a pigmentação.
Por sua vez, o bicarbonato de amônia em combinação com o de sódio serviria para restituir à pintura o efeito cromático real: enquanto aquele apaga as cores, este as acentua.
Não foram poucos os obstáculos encontrados pela perícia de Colalucci. Além do pó, da fumaça de velas e das rachaduras, havia a cola e os sais minerais. Os sais se cristalizaram nos interstícios do gesso a partir da evaporação da água, infiltrada ao longo de 450 anos. Um composto levemente ácido, conhecido como EDTA (sigla de etilenodiamintetracético), foi usado para dar cabo deles.
O caso da cola foi mais curioso. Por exames de idade, descobriu-se que ela não foi posta sobre a pintura nem por Michelângelo nem, tampouco, em sua época –mas décadas depois, não se sabe por ordem de quem.
Segundo Colalucci, foi a retirada dessa camada de cola a responsável pelo "susto", pela revelação de cores tão luminosas. A cola retinha fuligem; e isso, segundo Colalucci, "era como uma névoa que encobria toda a pintura".
Outra controvérsia diz respeito a uma resina, chamada B-72, que a equipe restauradora aplicou sobre algumas partes. A intenção é protegê-las e a resina é retirável, mas aqui falou alto o argumento de que Colalucci poderia ter esperado um pouco para ver se não surgia uma técnica de proteção melhor.
"Acho razoável", diz Iosissescu, "mas ninguém sabe quando e como vai surgir essa técnica. Seria trocar o certo pelo incerto."
Isso possibilitou à equipe definir, por exemplo, que 100% do teto e 99% das iluminuras (ilustrações secundárias, em cores vivas) foram pintadas a "buon fresco". Ou seja, pintadas sobre o gesso ainda úmido, e não a seco. Nas zonas a seco é que foi utilizada a B-72, que impermeabiliza a superfície.
Outro dilema enfrentado por Colalucci foram os "braghe" –folhas e outros ornamentos colocados no século 18 para esconder algumas genitálias. Isto ele preferiu conservar.
"O papa Paulo 4º queria até destruir o 'Juízo Final', mas a solução escolhida foram os 'braghe'. E até roupas foram pintadas. São momentos muito importantes na história da capela e como tais devem ser respeitados."

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