São Paulo, terça-feira, 5 de abril de 1994
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Um dia de INSS

JOSÉ SERRA

Se alguém acredita que é imune ao péssimo atendimento dos serviços públicos brasileiros, leia a carta que recebi de uma amiga:
"Estou a poucos dias do nascimento de meu terceiro filho. Tudo transcorreu bem nesta gravidez. Assim como nas outras, pude fazer um acompanhamento pré-natal de Primeiro Mundo, transitando entre médicos particulares, Hospital Albert Einstein e Laboratório Fleury. Mas precisava obter a licença-maternidade e, hoje de manhã, tive de passar num posto do INSS.
"Foi uma viagem a outro país. Como diz o Boris Casoy, é uma vergonha! Demorei mais de 15 dias para conseguir marcar a consulta, apenas para que o médico assinasse um papel dizendo que estou grávida.
"O horário marcado para todas as pessoas que se dirigem a um posto é às 7h. Assim se formam filas imensas, absolutamente desnecessárias. Embora eu fosse a décima na agenda do médico, levei uma bronca e quase não fui atendida porque, preguiçosa, cheguei às 7h30. Ele me atendeu ao meio-dia.
"Nestas quatro horas, assisti a cenas inacreditáveis de burocracia burra e desprezo ao sofrimento humano. Senhoras de mais de 60 anos voltam para casa e perdem a consulta por chegarem depois da hora de pegar a ficha. Só conseguem marcar a próxima consulta para depois de 15 ou às vezes 30 dias, independentemente da gravidade do caso. Remédios receitados não estão disponíveis. As salas de atendimento são sujas e mal equipadas. Os médicos parecem despreparados e atendem com má vontade.
"Deprimida com as cenas a que assistia, fui até uma banca próxima comprar a Folha e deparei com seu artigo sobre as filas do INSS. Surpresa com a coincidência, não pude deixar de escrever-lhe.
"Durante a gravidez de meu primeiro filho, eu estava na Itália e fiz o acompanhamento médico pelo INSS de lá. Apesar de toda a confusão que seus patrícios fazem, o atendimento não deve nada a qualquer sistema privado nosso. Algum dia isto deve mudar também entre nós."
Como se vê, até os poucos brasileiros afortunados que possuem recursos para procurar médicos e clínicas particulares acabam tendo seu dia de cidadão de segunda classe num posto do INSS.
Não se pense que o problema das longas esperas e dos maus-tratos num posto do INSS possa ser resolvido mediante uma simples privatização dos serviços básicos de saúde pública, que nem madame Thatcher tentou promover. Não se imagine tampouco que sua solução exigiria recursos descomunais. Não há necessidade de grandes recursos, mas sim de prioridades em sua alocação e, sobretudo, de empenho na reorganização do serviço público, na melhora de sua eficiência, na qualidade do atendimento.
Trata-se de realizações que não rendem sobrepreços, nem possibilitam a utilização do corporativismo dos funcionários para fins eleitorais. Mas certamente contribuiriam para eliminar diferenças revoltantes entre os cidadãos, além de permitir que os políticos tivessem menos vergonha de ser políticos.

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