São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1994
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"Dumping social" é golpe na jugular

JOSÉ PASTORE

Para atenuar o pavoroso desemprego que grassa na França, o governo baixou um decreto que permitiria às empresas contratarem jovens-aprendizes abaixo do salário mínimo. Os protestos de estudantes e trabalhadores foram de tal ordem que fizeram o governo recuar.
Na mesma época, aquele país decidiu levar à reunião do Gatt, em 15 de abril, no Marrocos, a idéia daquele órgão sobretaxar ou proibir as exportações de produtos que vêm de países que pagam salários inferiores aos dos seus importadores. Convém entender melhor as razões desta atrevida proposta.
A implantação gradual do Mercado Comum Europeu está trazendo mais problemas do que soluções para os países-membros. Se o mercado vingar, a Europa será uma região irreconhecível já no começo do novo milênio. As barreiras de comércio estarão inteiramente derrubadas. As atuais moedas terão sido abolidas. Os controles de câmbio serão coisa do passado.
Entre as mudanças mais dramáticas, entretanto, estão as do mercado de trabalho. A mobilidade entre países será livre. Os trabalhadores poderão procurar emprego em qualquer país da comunidade. Os migrantes gozarão dos mesmos direitos trabalhistas e previdenciários dos nativos. Na prática, os atuais mercados nacionais serão unificados.
Isso tudo foi muito bonito na hora de conceber, mas está se tornando um aparorante pesadelo neste momento de implantação. Os mercados de trabalho europeus são muito diferentes em matéria de salários, legislação, previdência, regras de negociação, benefícios colaterais etc. Um trabalhador alemão do setor automobilístico, por exemplo, ganha cerca de US$ 35.000 por ano; um espanhol de qualificação semelhante ganha US$ 15.000. A Inglaterra tem uma razoável liberdade para despedir empregados; a Itália continua com regras rígidas; a França segue rigorosa e a Espanha ainda mantém o instituto da estabilidade de emprego.
Ou seja, a Europa terá de acelerar muito a desregulamentação e a flexibilização para poder fazer os mercados de trabalho convergirem. Mas, isso não é fácil. O episódio da França é ilustrativo. Em 48 horas, multidões ocuparam as ruas de Paris e fizeram o governo revogar uma medida que visava ampliar o emprego para jovens. Com isso, os franceses disseram ao resto do mundo que os seus direitos sociais são "imexíveis".
Em vista deste fiasco interno, a França se lança agora –via Gatt– contra os países que estão em piores condições em matéria salarial, inclusive o Brasil. Na aparência, a tese é humanista –pois propugna elevar a renda dos mais pobres. Mas, como os franceses sabem muito bem que salário não se aumenta por decreto, este pseudo-humanismo se revela como o mais desumano protecionismo. Na verdade, eles querem estancar a entrada de nossos produtos para poder ativar a economia da França e dar emprego para os que protestam.
Os distúrbios de Paris foram apenas uma amostra do que serão as manifestações contra a flexibilização adicional dos mercados de trabalho na Europa. Os europeus foram acostumados a um sistema previdenciário generoso e uma legislação trabalhista protecionista –ambos superados pelas novas condições de competição da economia global.
Não será fácil sair fora deste contexto. As reações às primeiras experiências de flexibilização demonstraram que o processo será doloroso –embora inevitável. A Volkswagen, no ano passado –para salvar a empresa e os empregos– conseguiu cortar jornadas e salários, mas isso ocorreu depois de uma negociação traumática com o poderoso sindicato alemão da IGMetal. A Inglaterra, graças a muitas concessões dos trabalhadores conseguidas em rodadas infindáveis de negociação, passou a terceirizar uma parcela substancial de sua mão-de-obra com vistas a reduzir encargos sociais e manter a maior parte das pessoas empregadas. A flexibilização –embora desgastante– é absolutamente essencial para a Europa poder competir com os Estados Unidos, Japão e Tigres Asiáticos.
Portanto, em lugar de investir na nossa jugular, a França deveria investir em medidas que levem a sua juventude a compreender que é melhor ter empregos a salários mais baixos do que amargar os dissabores do desemprego que, daqui para frente, só tenderá a aumentar.

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