São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1994
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O filho de Deus começa a se tornar homem

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Qual é a diferença entre o Betinho e João Alves? Um é convexo e o outro é côncavo. Betinho é virado para fora. Não come. O outro é virado para dentro. Come tudo que passa.
Diante do mundo, o animal só quer comer. O homem pode esperar (ao menos devia). O homem pode abster-se. O Brasil é um país de côncavos, devoradores. Num país de comedores, Betinho não come nada. Dá medo falar do Betinho –há perigo de ser injusto.
Betinho é um faquir num país de glutões. Betinho virou o logotipo da própria campanha. Cada vez mais se parece com os miseráveis que defende. Pouca gente se identifica com ele. Os ricos, os gordos, os sadios não se identificam com ele. Apenas rosnam com respeito, num misto de idealização com inveja, com um vago mau humor diante de tanta pureza ostentada. Do pobre alguns têm pena (poucos). Do Betinho temos medo, por que ele é mais trágico do que nós.
Betinho é uma espécie de miserável portátil que admiramos. Betinho é um pobre com visão de mundo, com título de doutor. Um pobre que quer salvar o povo da fome e a nós do egoísmo. Tão magrinho, tão frágil, ainda tem energia para isso tudo. Betinho tem a aura "demodée" do herói. E nos humilha com sua bondade, pois pensa em nós. E nós só pensamos em nós. Betinho relançou a moda da santidade no Brasil. Só a santidade é forte contra o capitalismo (Lacan).
Maquiavelismo caipira
É impossível não juntar Betinho à idéia de Deus. Betinho foi sendo transformado em santo. Com a santidade ele criou uma crise para o país. O Brasil estava docemente embalado no cinismo pós-pós. A moda suprema era o "maquiavelismo caipira", ou seja, a idealização da escrotidão como forma de sabedoria. "Maquiavelismo caipira": a elevação do oportunismo rasteiro a categoria filosófica. Nossos corruptos e covardes transformaram a esperteza em saber.
Para o político básico, para o burguês larvar, virtude é coisa de veado. ("Roubei no Orçamento!". "Isso, dá-lhe Maquiavel!". "Descolei uma comissão bárbara!". "Muito bem! O que é o Ser, afinal?"). Há um secreto orgulho na escrotidão brasiliense como há uma doce tolerância com os adoráveis contraventores do bicho, comandados por torturadores como o capitão Guimarães.
Todos estávamos cinicamente conformados com a sordidez inevitável, num alívio com o desencanto pós-moderno, que nos tirou o fardo da justiça e da bondade. Estávamos conformados com a transparência do mal, e lá vem o Betinho nos trazer o bem. Betinho nos matava de culpa.
Éramos todos canalhas perto do Betinho. Que fizemos então com este santo que nos incomodava? Primeiro, transformamo-lo em "mais santo" ainda, numa Madre Tereza de Calcutá de calças. Santificado, ficamos eximidos de imitá-lo. Como santo, ele tinha a vantagem de demandar apenas a abstrata solidariedade dos ricos e não sua expropriação. Através de doações, aplacamos sua fome e nossa culpa.
O grande perigo de Betinho é que ele legitimasse a idéia de uma política paralela, de um homem fora do homem, de uma ascese coletiva que nos salvaria. Havia algo de Gandhi no Betinho. Que aconteceria se o Betinho saísse da prisão da santidade e caísse na política? Ele teria de fazer o sujo jogo de conciliações e não poderia trabalhar com categorias gerais e supremas como fazem os grandes metafísicos. Sua santidade colocava-o acima de nossa discordância.
Conheço gente que odeia o Betinho, mas não tem coragem de criticá-lo. Dizem: "Acho uma besta, mas... ele é legal". Viramos Betinho em santo para não competir conosco.
Nasce uma estrela
Eu vi o Betinho nascer. Há 32 anos ele nasceu da esquerda católica, fundando a Ação Popular (AP). Eu era do time ateu do marxismo mal lido e tinha raiva de uma superioridade que a turma do Betinho ostentava; segundo eles, havia "algo mais" que a sociedade. Além do capitalismo e do socialismo, havia "algo mais". Havia (e há) a idéia de "queda". Somos uma "queda". Da natureza, até concordo. Mas era do espírito.
Havia também, a idéia de "parúsia" (nos ensinara o filósofo padre Vaz), algo tipo "comunismo do futuro com Deus", espécie de paraíso sobre a terra, que atingiríamos. Até hoje, minha amorosa discordância com Betinho seria por aí. Até hoje, ele mantém este amor por "algo" que não está aqui, que é além da sociedade, além do egoísmo, além do óbvio. Eu já acho que não há nada além da sociedade real, e nela temos de transar.
No entanto, aí está a ingenuidade e a grandeza de Betinho. Ele mantém viva a chama dos anos 60, o que esta época deu de melhor: a crença em alguma coisa transcendental para além dos interesses do "maquiavelismo caipira".
Nos últimos anos, acho até que o Brasil estava mesmo precisando de um banho de sordidez, de óbvio, de desencanto, que o Collor e os bons anões nos trouxeram.
Mas, já começa um tempo de tecer uma nova fome de utopia, da qual Betinho é um dos líderes. Bem ou mal, há no país três projetos visíveis de mudança moral. Temos o projeto do PT movido a nobres ideais de justiça, mas (a meu ver) caído num programa equivocado. Há o projeto do PSDB, de conciliar tendências num "centro" de modernização política antiagrarista e antiibérica. E tínhamos São Betinho.
A lama vital
Súbito, o filho de Deus se fez homem. Pegou uma grana dos bicheiros. O susto foi igual a um sacrilégio. Teria Cristo comido Maria Madalena? Nosso susto foi seguido de um alívio.
"Viu? Ele também é escroto como nós!" –suspiram aliviados políticos e burgueses, jogando fora o fardo da bondade. No entanto, foi ótimo o que aconteceu. Betinho é um grande homem que só tinha errado ao achar que podia trabalhar numa zona neutra de bondade e amor, numa espécie de milagre franciscano, longe do mal do mundo (seu vício idealista dos anos 60). E, de repente, se viu envolvido com Castor de Andrade, que tinha o carisma populista de marginal-herói.
Mas a realidade pinta sempre, e sempre para o bem. Foi um choque de realidade. Betinho estava aprisionado na sua imagem de santo. Na verdade, seu "erro" só nos humanizou, humanizando-o.
Betinho devia se abaixar e beber da sarjeta esta lama vital que o salva e enobrece.

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