São Paulo, sábado, 16 de abril de 1994
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Livro descreve paixão concreta

FERNANDA SCALZO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em "Paixão Simples", a escritora francesa Annie Ernaux faz o que todos gostariam de fazer. Conta sem rodeios a sua fissura por um homem. Os segundos intermináveis que ficou esperando ele ligar, tudo o que fez e deixou de fazer por causa dele.
O livro é autobiográfico e o homem, "A.", um anônimo. Porque "A." é casado e só aparecia quando podia. Os encontros duraram cerca de um ano, até que "A." deixou a França para voltar a seu país (sabe-se apenas que é no Leste Europeu).
"Paixão Simples", agora lançado no Brasil pela editora Objetiva, foi best seller na França e traduzido em vários países, inclusive no Japão.
Em menos de 70 páginas, a escritora resume sua vida de apaixonada, no estilo seco e ansioso que caracteriza a espera.
Annie Ernaux, que tem 53 anos e nunca mais viu o homem por quem se apaixonou loucamente, falou à Folha sobre o sucesso de "Paixão Simples", seu sexto livro.
Ernaux é professora de literatura no ensino superior por correspondência e já lançou na França mais outro livro: "Journal du Dehors" (Diário do Mundo Exterior).
Folha - A que você a atribui o sucesso de seu livro?
Annie Ernaux - Acho que falei do amor e da paixão de uma maneira bem direta, que corresponde, sem que eu soubesse, a um desejo das pessoas.
É uma maneira não romanesca de falar, mais concreta, que corresponde melhor à época em que vivemos. Escrevi como sentia, mas o fato está aí.
Folha - Você acha que se pode qualificar sua narrativa como "feminina"?
Annie - Não sei. Eu sou uma mulher, mas não sei como escrevo, sigo minha natureza. Mas pude notar que houve tantos homens quanto mulheres que leram esse livro e que gostaram.
Nunca me pus essa questão, mas acho que não se pode chamar o livro de feminino ou masculino. Falo da paixão e acho que ela se exprime mais ou menos da mesma maneira entre mulheres e homens.
Digo isso porque recebi cartas que diziam: "Eu sou um homem, mas vivi a mesma coisa do lado masculino". E as mulheres me escreviam dizendo que tinham se reconhecido no livro, é claro.
Folha - Por que o livro se chama "Paixão Simples"? A paixão pode ser simples?
Annie - Não é no sentido de simples como "não complicado". É mais no sentido de pura. Na química, fala-se de corpos simples e corpos compostos. Os simples são corpos puros, de matéria pura. "Paixão simples" quer dizer a paixão e nada mais que ela.
Não há outra coisa no livro, eu só falo da paixão. Não há uma história que começa antes e que se segue. A paixão com certeza não é uma coisa simples.
Folha - Escrever o livro foi uma maneira de fazer durar e eternizar a paixão?
Annie - Com certeza. O drama da paixão para todo mundo é que ela nunca dura. Ou a pessoa se casa e aí não é mais de jeito nenhum a mesma coisa. Ou a gente se separa, fica cheio. Em todo caso, não dura nunca.
Foi evidentemente para mim uma maneira de fazer durar a paixão, na medida em que ela se tornou a paixão dos outros, com a acolhida que o livro teve na França e em outros países como o Japão ou a Itália. Isso foi a coisa mais legal que eu podia esperar.
Porque para mim também a paixão terminou. Eu não vivo mais o que eu conto no livro.
Folha - O livro é completamente autobiográfico?
Annie - Sim, completamente.
Folha - Mas você não acha que mesmo que se tente contar exatamente o que se passou, há sempre uma tendência de se distanciar da realidade quando se escreve?
Annie - Não, não nesse caso. Por causa da maneira como escrevi, que é totalmente fundada nos fatos, no que eu fazia. Uma atitude de escrita completamente materialista.
Coisas como não passar o aspirador, não saber se devia começar a me preparar fazendo as unhas, ou fazendo coisas para comer. Essas pequenas coisas são muito precisas.
Claro que há coisas que eu esqueci, sem querer, e outras que eu não falei de propósito, porque não conseguia. Não sabia dizer os sentimentos, por exemplo. Acho que só através dessas coisas oncretas que conseguia exprimi-los. Mas não houve distorção em relação àquilo que eu vivi.
Folha - Com o sucesso, você teve medo que o homem que é o objeto de sua paixão e do livro o lesse?
Annie - Tive. Não sei se ele leu, nem sei se gostaria que ele tivesse lido ou não. Mas eu não podia me impedir de escrever, em todo caso.
Folha - E você nunca mais o encontrou?
Annie - Não, nunca mais. Talvez ele tenha lido o livro e não tenha gostado. É possível, não sei.
Folha - Você acha que o livro é importante para as mulheres porque expressa o que todo mundo sente?
Annie - Sim, todas as cartas que recebi vão nesse sentido. Muitas me diziam que as mulheres se sentem culpadas de viver paixões e de se sentirem loucas por um homem.
Percebi que elas se sentem bem mais culpadas que os homens, e muito mais ainda se elas têm mais de 30 anos. Quando são jovens, elas sofrem, mas não se sentem tão culpadas. Se elas têm filhos, então é muito pior.
É um livro que tira essa culpa. Há uma outra culpa que é da nossa época, não sei se por causa do feminismo, de um feminismo mal compreendido com certeza.
As mulheres têm a impressão que é pior ter sentimentos que pensar na carreira. Eu já acho que podemos ter os dois.
O que as mulheres também me diziam em muitas cartas era quanto elas haviam desejado fisicamente um homem e que isso não se encontra muito na literatura.
Folha - Por que as mulheres sentem tanta culpa?
Annie - Acho que está ligado a preconceitos. As mulheres são muito românticas, acham que não se deve agir assim. Na França, já há algum tempo havia, sobretudo nos anos 80, uma idéia de que a paixão tinha passado de moda.
Achava-se que a associação entre homens e mulheres é boa, deve-se ter boas relações sexuais etc., mas não a paixão. Bom, o livro revelou um monte de coisas e sobretudo que a paixão não estava morta. Mas nos Estados Unidos o livro não teve a mesma acolhida.
Folha - Por quê?
Annie - Como se a paixão não fosse boa, não fosse correta.
Folha - Da parte das feministas americanas?
Annie - Não sei. Também as jornalistas, não sei de que lado elas estão, mas muitas não gostaram. Eu recebi uma carta de uma americana que dizia que ela não queria nunca mais saber disso, que tinha seu marido e seus filhos e não queria de jeito nenhum atrapalhar sua vida com paixões como essa.

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