São Paulo, sábado, 16 de abril de 1994
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Inimigo dos poetas e músicos volta a atacar

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O mundo das artes era antigamente devastado pela tuberculose e o tédio. Agora é o tempo da Aids e do desespero.
Eu estava lendo, como todo o mundo, notícias da morte desse rapaz, Kurt Cobain, que, confesso, era figura extremamente vaga para mim, quase inexistente. Cresceu agora, para todo o mundo, como herói meio incompreensível de um suicídio, incompreensível pelo fato de ser ele tão moço e de desfrutar um êxito profissional tão grande e tão bem-remunerado.
As notícias ligavam o nome de Cobain, estrela de um grupo chamado Nirvana, ao de outros suicidas, ou meio-suicidas (os que morrem de overdose) do showbiz, como Elvis Presley, Jimi Hendrix, Janis Joplin e a nossa Elis Regina.
É que há muito tempo eu me perguntava que fim tinha levado uma famosa "causa mortis" de século e meio atrás, que é ainda comentada devido às ilustres vítimas que fazia. Eu me refiro àquilo que os franceses chamavam "ennui", os ingleses "spleen", e que para nós era simplesmente o tédio.
Os artistas criadores em geral da Europa mas também das Américas lutavam então contra esse inimigo terrível porque mal definido e dele se defendiam com os remédios que encontravam nas adegas e farmácias da época: vinho e as mais variadas aguardentes, além do absinto, do ópio, do haxixe, mais tarde da cocaína, e tudo mais que produzisse visões como as de Poe e iluminações como as de Rimbaud.
Os ingleses, sempre buscando apoio no racional, fixaram o tédio no baço, "spleen", onde ferveriam os negros humores da melancolia, do cansaço da vida, do pior dos desesperos, que é aquele sem causa aparente.
O poeta francês Charles Baudelaire, de tão guloso que era de qualquer forma de tédio, em qualquer língua, reuniu poemas seus numa seleção intitulada "Le Spleen de Paris". Baudelaire, como se sabe, de tanto se comportar mal e chocar a burguesia, acabou processado e condenado a pagar multa ao Estado. O livro que até hoje nos deleita e nos comove, "As Flores do Mal", foi considerado pornográfico quando publicado.
O primeiro poema desse livro é um sombrio hino ao tédio, que Baudelaire dedica, singelamente,ao leitor, e no qual, depois de descrever todos os horrores que assediam o homem, ou que o homem inventa na sua caminhada do berço ao túmulo, conclui que nenhuma se compara ao tédio. O leitor sabe perfeitamente disto, diz ele, sabe disto tão bem quanto o autor dos versos, o poeta maldito, perseguido, processado e multado. Finge que não, mas sabe. Desde que li pela primeira vez o poema guardei versos na memória, pela beleza intrínseca deles e pelo mistério que encerravam. O poeta vai esculpindo lentamente o monstro que o persegue e lhe envenena a vida, o "monstro delicado", e depois nos olha bem no olho e fulmina: "Leitor hipócrita, meu semelhante, irmão".
O corvo no quarto
O poema era e é terrível porque poemas se fazem com palavras e as de Baudelaire construíam um monstro muito convincente. Mas chamar esse monstro de tédio, "ennui"?
A verdade é que, na época em que foram escritos os versos, todo o mundo entendia. O tédio era o "mal do século". O que é o corvo de Edgar Poe senão outra encarnação do monstro baudelairiano? Um corvo dentro do quarto em que o poeta trabalha, empoleirado num busto e a grasnar "nunca mais" o tempo todo?
A diferença entre os dois poemas é que o de Baudelaire nos assustará para sempre, enquanto o de Poe revela cada vez mais um certo ridículo. O corvo falante e o excesso de ritmo dos versos a mim me lembram vagamente desenhos animados. Mas ambos os poemas tratam de um monstro real, que existiu, e que era o companheiro, às vezes o causador do monstro seu irmão, a tuberculose pulmonar, a tísica, a peste branca, que as hidrazidas vieram curar. Entre nós, graças às novas drogas, Nelson Rodrigues, por exemplo, conseguiu escapar à tuberculose, mas Noel Rosa morreu antes da descoberta a cura.
No século passado, a tuberculose, em geral acompanhada de um tédio às vezes duvidoso, postiço, ceifou nossos melhores talentos quando ainda mal começavam a dar flor: Castro Alves, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo.
Este último, sobretudo, morto aos 21 anos, parecia uma enciclopédia dos males do seu tempo: sofreu de um tédio comparável ao de Baudelaire, de uma inspiração macabra como a de Poe, enquanto sonhava com orgias venezianas, como as de Byron, e morria tísico como Chopin.
E talvez devêssemos abrir um nicho especial para um poeta bem mais recente (morto em 1914) mas que foi, em sua grande e insólita poesia, o mais atormentado pela idéia da inutilidade de viver.
Todos os poetas que mencionamos até agora, além dos muitos outros que floresceram nos tempos do tédio e da tuberculose, identificaram, em algum momento, a imprudência maior, o pecado sem perdão: o de existir.
Uma vez nascido, o homem estava fadado a uma infelicidade sem apelação. Esse sentimento da orfandade do homem perdido nos caminhos de pedra e de espinhos do mundo, desembocava, para os mais sensíveis e exigentes, num desejo de inexistência. E ninguém formulou melhor essa angústia de "ser" do que Augusto dos Anjos.
No seu estilo meio científico de fazer poesia ele dirigia apelos quase de laboratório a germes e embriões alegres e descuidados, pedindo-lhes que não progredissem, não evoluíssem, pois do contrário chegariam um dia "ao supremo infortúnio de ser alma". Num soneto chamado "Budismo Moderno", Augusto dos Anjos (que também morreu tuberculoso) pede polidamente ao médico: "Tome, doutor, essa tesoura e corte minha singularíssima pessoa".
Pessoas singularíssimas, de alta sensibilidade, que se afastam um dia da vida por se impacientarem com o atraso, a impontualidade da morte, como Sylvia Plath, como Ana Cristina César.
O monstro existe Eu confesso que, até algum tempo atrás, considerei o "monstro" de Baudelaire como animal extinto, uma espécie de Tutu Marambaia de infância da nossa época, quando o homem perdia seus espaços pastoris e era trancado na jaula das modernas cidades, para cumprir um destino ainda obscuro. Prova da extinção do monstro seria o fato de que nem os franceses usam ainda
"ennui" com aquele sentido baudelairiano, nem os ingleses culpam o "spleen" por tantos males.
Mas me parece chegado o momento de reconhecer que o monstro mudou de nome, trocou a doença que outrora disseminava e as drogas que ministrava, mas continua vivo e feroz, como se pode ver pela carta de despedida que deixou Cobain, entediada, angustiada, exigindo não-ser.
"Há anos que não me emociono com nada". Tinha 27 anos, estava no auge da fama, era milionário. São os suicidas mimados, que conseguem tudo aquilo que a maioria das pessoas gostaria de ter, mas que preferem, imediatamente, a morte, com ou sem o nirvana no fim da linha.
Recado a Betinho
Depois de escrever sobre os que "morrem de amor pela morte" (Mário Faustino) mando aqui um recado ao brasileiro que mais ama a vida. Sitiado sem tréguas pela morte, Betinho só pensa em afastá-la de si e daqueles que jejuam não para agradar a Deus mas por que não têm o que comer. O seu "mea culpa", Betinho, por ter aceito dinheiro de jogo do bicho, virou o maior plebiscito de ordem moral que este país já viu. Ganhou você. Pecados expiados valem mais que a virtude sem uso. Retome com mais força ainda seu mutirão pela vida.

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