São Paulo, segunda-feira, 18 de abril de 1994
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Quem gosta de miséria

LUÍS NASSIF

O artigo "Os organismos multilaterais e o Brasil", da professora Maria da Conceição Tavares, pubicado neste domingo na Folha, é exemplo acabado de como cada vez mais no Brasil o discurso econômico tornou-se mero instrumento de proselitismo político.
Fazem parte dessa mitologia –do qual o artigo da professora é peça didática– mitificações tipo "interessa ao capital estrangeiro manter o Brasil na miséria para poder explorá-lo melhor", brandido por alguns pensadores do velho estilo.
Hoje em dia, vendem-se 1,5 milhão de autoveículos para uma economia com renda "per capita" ridícula e mal distribuída. Se a renda fosse maior e mais equilibrada, vender-se-iam obviamente muito mais automóveis. Sem desenvolvimento, o lucro das multinacionais proviria de quê: de plantação de bananas?
Longe de defender o alinhamento automático com o capital estrangeiro. Mas tem que haver clareza a respeito de sua lógica, a fim de aprofundar interesses convergentes e bloquear interesses conflitantes. Se não, institui-se essa esquizofrenia, que afeta a escola de pensamento que a professora lidera: o Brasil necessita de capital externo, desde que investir no Brasil não signifique vantagens para o capital externo. Cáspite!
Tome-se o raciocínio desenvolvido pela professora:
O Secretário do Tesouro norte-americano, Lloyd Bentsen, declarou em pleno Congresso, que o governo Clinton vai defender o aumento dos empréstimos dos bancos multilaterais a nações na área de influência comercial norte-americana. Promovendo o crescimento destas nações –explicou o secretário–, estariam beneficiando a própria economia, que poderia exportar mais para estes países.
Na década de 40, o empresário e homem público Nelson Rockfeller convenceu os Estados Unidos de Roosevelt a aumentarem as inversões no Brasil, partindo da mesma lógica: a necessidade de tornar as economias latino-americanas modernas sociedades de consumo, libertas da ação nefasta do coronelato, de maneira a tornar a região um grande parceiro comercial norte-americano.
Foi o tiro de partida para uma série de iniciativas que, prejudicadas pela morte de Roosevelt e, mais tarde, pela guerra da Coréia, foram importantes para a disparada desenvolvimentista dos anos 50 –permitindo a criação do BNDES.
A partir dos anos 60, eventuais colaborações só eram estimuladas pela Guerra Fria. Com a derrocada da União Soviética, o grande nó da diplomacia brasileira era como levantar nova linha de argumentação, que convencesse os EUA a considerar o Brasil e a América Latina parceiros preferenciais.
De repente, uma das mais altas autoridades norte-americanas, em pleno Congresso de seu país, admite que a promoção do desenvolvimento, em países comercialmente ligados aos EUA, é relevante para a própria economia norte-americana, em sua guerra comercial com o Japão e os Tigres Asiáticos.
Qual a conclusão da grande dama da economia brasileira? "Naturalmente, as 'condicionalidades' (não especifica quais) não se aplicam ao Japão e aos Tigres Asiáticos com quem a 'guerra comercial' vai de vento em popa e continuam reagindo ferozmente ao neoliberalismo do Consenso de Washington".
E Maria com isso? Por acaso é candidata à Câmara dos Deputados do Japão, ou uma pessoa preocupada com o crescimento da economia brasileira, como forma de garantir emprego e combate à miséria –temas tão gratos a ela?
Do neoliberalismo, a velha mestra parte, sem nenhum fio lógico aparente, para a candidatura FHC: "Para quem não sabe, ou não quer lembrar, o atual candidato FHC é membro ilustre da Comissão de Relações Exteriores do Senado (...) e é hoje um dos maiores 'racionalizadores' e 'propagandistas das nossas' excelentes relações com Washington". Como se defender aumento dos financiamentos ao Brasil se constituísse em crime de lesa-pátria. Quem gosta de miséria é intermediário de verbas da subvenção social e políticos à cata de votos.

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